quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

DO INÍCIO DA IDADE MODERNA ÀS MEMÓRIAS PAROQUIAIS - Carta Gastronómica de Bragança

A 20 de Maio de 1453, os turcos tomam Constantinopla. Principia a Idade Moderna. Talvez
possa ser considerada excessiva manifestação de vaidade, logo desastrada, se escrever que os portugueses antes da Idade Moderna já lá estavam.
E, estavam. Vejamos: muito antes da conquista turca, em 1419, João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira atingem a costa de Porto Santo, iniciando a descoberta de «novos mundos » em evidente sinal de modernidade científica e técnica náutica. A expansão portuguesa começou a 21 de Agosto de 1415, com o desembarque em Ceuta.

A 20 de Fevereiro de 1460, D. Afonso V eleva Bragança a cidade. No mesmo ano, Diogo Gomes e António da Nola descobrem cinco ilhas orientais de Cabo Verde, e o Rei O Africano doa ao seu irmão, D. Fernando, as ilhas da Madeira (produtora de açúcar), Porto Santo e as ilhas açorianas.
No que tange a comeres e beberes das populações, as mudanças no regime dietético decorrem lentamente. Desde 1455 que produzíamos açúcar na ilha da Madeira. A nossa condição de produtores, levando ao embaratecimento da delicada «especiaria», continuou a estar fora do alcance da quase totalidade dos habitantes de Bragança. Até aos anos setenta do século vinte, o açúcar mais vendido era o escuro dado custar menos que o branco, assim o confirmam as declarações das Senhoras cujos depoimentos enriquecem esta Carta Gastronómica.
A tomada de Ceuta fez-se no intuito de aliviar a pressão alimentar causada pelas sucessivas más colheitas cerealíferas, nas terras africanas havia abundância de trigo. Outras riquezas esperavam-nos, podíamos não saber quais, só sabíamos de algumas, motivo mais que suficiente para as sucessivas descobertas no propósito de conseguirmos
chegar à almejada Índia e ao Brasil. Em consequência das bem-sucedidas viagens e estabelecimento de posições em África e na Ásia, assumimos a condição de centro de venda de produtos oriundos dos dois Mundos, do Velho e do Novo.
O passarmos a ser plataforma continental de abastecimento do raro, do estranho, do custoso, provocou significativas alteridades no consumo, atingindo todo o País. No intento de melhor ilustrar o afirmado, repare-se, no que trouxemos e levámos:
Através da Terra Santa importámos a cana do açúcar, logo cultivada com enorme êxito na Madeira, da Índia recebemos especiarias: açafrão, canela, cardomomo, cominho, cravinho, calanga, gengibre, curcuma, noz-moscada, várias pimentas. Da África chegou-nos o café e a malagueta que tão populares se tornaram, ouro e escravos. Das Américas vieram: abóbora, abóbora-menina, alcachofra, amaranto, amendoim, amora, ananás, arroz selvagem, baunilha, batata branca, batata-doce, cacau, caju, feijão-verde, girassol, mandioca, milho maís, pimentas, pimento, quinoa, quinino e tomate. Nas espécies animais: o pato muscóvia e o peru. Para as Américas levámos: alho, ameixa, anis, arroz, azeite, banana, beringela, beterraba, brócolo, café, cana-de-açúcar, canela, cebola, cereja, centeio, cevada, chicória, couve, coentro, gado vacum, gengibre, grão-de-bico, inhame, laranja, lavanda, lentilha, limão, maçã, malagueta, marmelo, melancia, noz-moscada, pepino, pêssego, pêra, pimenta preta, romã, salsa, salva, sésamo, soja, trigo e uva. Nas espécies animais: o burro, a cabra, o cão, o cavalo, a galinha, o porco e o gato preto.
As benéficas consequências deste fecundo «jogo das trocas» produziram efeitos imediatos nuns casos, noutros aconteceram muito mais tarde. Se o milho maís foi adoptado desde logo, o mesmo não aconteceu com a batata. O polivalente tubérculo, nos finais do século
XIX ainda provocava desconfiança nas terras de Miranda, levando a o seu consumo estar restringido aos porcos, leiam-se as Memórias da Real Academia de Ciências alusivas à implantação e consumo da batata em Portugal.
Por todo o século XV, Bragança continuou a afirmar-se como a principal cidade da província transmontana, razão para acumular isenções.
Em 1498, o seu porto seco recebe o benefício de a totalidade de os mantimentos vindos de Castela serem isentos de direitos alfandegários e do pagamento aos oficiais que faziam os despachos. Esta medida visa potenciar o movimento de mercadorias, neste caso bens de primeira necessidade, assegurando a mantença das populações num território fortemente atingido pela carência de géneros.
O porto seco de Bragança funciona permanentemente, os mercadores escolhem-no em primeiro lugar para distribuírem as matérias-primas através das rotas peninsulares de maior lastro comercial.
Apesar da sangria verificada nos anos posteriores à expulsão dos judeus aliada a anos de más colheitas, o porto seco de Bragança devido à sua privilegiada posição estratégica continua a atrair mercadores e comerciantes, o que o elevou a ser um dos quatro portos permitidos entre Douro, Minho e Trás-os-Montes.
A aspereza climatérica, durante a maior parte do ano, os montes alterosos prósperos em matagais infestados de lobos, raposas e porcos-bravos, caça e outros animais de menor porte, as rudes e quantas vezes intransitáveis vias de comunicação, sem embargo do intenso vaivém dos almocreves, mercadores, comerciantes e recebedores, faziam do «reino maravilhoso» um reino isolado, quase circular. As «novas» espécies comestíveis resultado do nosso «domínio» dos mares, aportam tarde, excluindo o milho maís e a malagueta as restantes espécies demoram muito tempo a serem integradas nos hábitos alimentares dos bragançanos, o seu custo também está implicado no afastamento.
Nos finais do século XVII, o Padre Carvalho da Costa procedeu a um inquérito a nível nacional a fim de elaborar a Corografia do Reino, o que conseguiu e deu à estampa no ano de 1706. A sua consulta é obrigatória no intento de verificarmos se existiram alterações no
respeitante a recursos naturais entre o antes e depois da navegação por mares nunca dantes navegados e da materialização do Império na África, Ásia, América do Sul e Oceânia.
No que tange a Bragança, o padre Carvalho da Costa localiza-a geograficamente, descreve as suas origens baseado na historiografia até ali escrita, regista os apelidos dos principais dignitários da cidade, enuncia as paróquias, igrejas, conventos, mosteiros e demais monumentos.
Não menciona o poço de S. Francisco cuja água seria virtuosa. A “cidade é abundante de pão e vinho” e, mais não escreveu o autor acerca de mantimentos originários do termo brigantino. Mas, outras fontes de informação ajudam a perspectivar o mapa alimentar na altura, uma delas é um documento de 1639, inserido no Tomo XI, das Memórias do Abade de Baçal (Padre Francisco Manuel Alves). O teor do documento, expressa corajosa e negativa reacção da Câmara de Bragança contra o lançamento de novas contribuições, impugnando-as, baseada no facto de nesse tempo a cidade sofrer atroz falta de alimentos.
Dada a delicadeza da situação, a acarretar fome aos habitantes da cidade e para melhor elucidação das razões da recusa em a Câmara aceitar novo agravamento de impostos, a contestação camarária aduz fortes e incontestáveis argumentos em defesa da frontal oposição a novos impostos e alcavalas:

“E além desta sisa com que já se aquietam por lhe ficar como herança dos seus passados, tem dado esta Câmara a sua majestade seis annos a esta parte pera a restauração do Brazil e armadas a saber no anno de seis centos e vinte novo mil reis e no seguinte de
seis centos e trinta e quatro mil reis, que com particular provisão sua se pedirão prestados aos mesmos moradores do que ainda se está devendo muita parte e outro si se pagarão alguns pedidos como foi o imprestimo geral e a esmola voluntaria que pouco tempo he se tirou por todos com róis feitos das pessoas que davam e não davam e outro lançamento que fés pellas pessoas de trato e meneio nos coais todos contriboirão os moradores desta cidade e sua terra como bois vassalos a troco de lhe tirarem da boca de seus filhos ae ficarem postos no último da miséria tudo por acudir as necessidades que sua majestade lhe representava por quanto ouve pessoas que foi necesario venderem parte dos vestidos de seu uso por escusarem as prisois com que estão ameaçados das justiças. Nisto se junta a carestia de pão que nos persegue desde ano de seis centos e trinta e três porque nesse anno lhegou a valer quinhentos reis o alqueire…”

O enérgico protesto da Câmara de Bragança expõe a dependência alimentar dos seus habitantes de cereais e da castanha, a qual só vai ser atenuada, mais tarde, através do massivo cultivo do milho maís e da batata. No ano 1639, imperava a penúria no concelho trazendo gemidos, doenças e finamento.
O acervo documental da Santa Casa da Misericórdia de Bragança, que Monsenhor José de Castro tão bem estudou, fornece elementos relativos a produtos incluídos nos comeres servidos e/ou doados aos precisados da Comunidade.
O historiador bragançano, na obra que estuda a acção da Misericórdia de Bragança, consagrada em 1586, anota os mantimentos e os gastos com as refeições destinadas a doentes, presos, pobres, pobres de pedir (esmolavam de porta em porta), que são: quartilhos de azeite, grão-de-bico e moletes de pão cozido. No Natal de 1698, gastaram-se
1650.000 réis em carne e vinho, e até 1711, na quarta-feira da Quaresma distribuía-se aos presos jantar abundante, onde o bacalhau e o grão-de-bico constituíam o prato principal, sobremesa de marmelada à descrição e vinho conforme a apetência de cada um.

Carta Gastronómica de Bragança
Autor: Armando Fernandes
Foto: É parte integrante da publicação
Publicação da Câmara Municipal de Bragança

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