terça-feira, 23 de julho de 2019

A Ponte de Vidro - INTRODUÇÃO A TORRE DE DONA CHAMA

Torre D. Chama - Praça do Santo
O monte de São Brás tem a desafiá-lo monte que chamamos Fraga. Separa-os um abismo respeitável de vinhas, estevas e mato por onde meu avô caçava. Uma ponte entre ambos seria de grande inutilidade; mas as promessas cumprem-se, e mais bela seria essa jura de princesa moura – caso vencesse os cristãos –, se o inútil virasse espantoso tabuleiro de vidro, acaso seguro em pilares sensíveis e cristalinos.
Sempre que entro nas minhas guerras de reconquista – um novo texto, outra infidelidade ao pensamento único –, lembro-me dessa ponte adiada na voz de narrador que, perguntado pela criança que eu fui – «E depois, avô?» –, respondia no limiar da novela de estreia: «Depois isso. Não fizeram a ponte e pronto.» Seja: não é que não houvesse vidro (de facto, não havia); a beleza da tentadora dona é que não chegava. Não deverei eu, autor sobre um abismo de nada, criar outro impossível, transformando a luxúria do verbo em amor de verdade aos seres de que me vou tornando senhor?
Eis a lição da minha princesa, Eugénia, no romance da terra natal, Torre de Dona Chama (1994), longa resposta à pergunta com que fechava a novela Várias Bulhas e Algumas Vítimas (1980), onde já colocara as versões literárias, oralizantes e históricas, que se conjugavam naquele nome, mas que, agora, nos meus distantes dias de Budapeste (1985-1986), eu vinha subverter, num quadro ainda medieval, estritamente bakhtiniano. Noutros momentos, em poema e conto, retomei essas preocupações, também homenagem ao berço.
Quanto às fontes literárias, tínhamos a linhagística desembocando n’“A Dama Pé de Cabra” (com extensão, em 2005, a Fascinação, de Hélia Correia), cuja edição crítica dei em Conto Português. Antologia Crítica (2005): como ela, a nossa Chama / Chamorra era pernas de cabra, / cara de senhora. Mas esta vivia numa torre, lá no cimo do monte hoje de São Brás, donde vigiava a cristandade. Era, pois, a torre de Dona Chama. Consideram outras vozes que a sineta que na torre tocava ao meio-dia, para despegar do serviço, levava os cristãos, em baixo, no vale onde se ergue a localidade, a entredizer-se: «Na torre, a dona chama.» Chama seria, portanto, ou nome de dona, ou forma verbal. Em qualquer caso, além da erótica herculaniana, a nossa era mais ígnea – nós mesmos designamo-nos flamenses, preferível a flamulenses –, de uma luxúria sem travão, obcecada por corpos de religião adversa, que atrai a si para, cevada a luxúria, os matar no tálamo de prazer.
Ao iniciar o meu romance, sabia que a expectativa dos dois narradores – um jovem professor recém-chegado e um jornalista da terra, primo da heroína – se casava neste lugar-comum: se desapareciam homens da terra, ou eram assassinados, é que morriam nas garras de jovem órfã e rica, acastelada em luxúria. Por analogia, esperavam outros poderes locais, a começar num tio da menina, que esta, descoberta em suas maldades, fosse justiçada ou se precipitasse na morte, deixando atrás as suas riquezas.
Na versão da princesa moura, ela é descoberta na figura (pernas de cabra), vício (sexo desenfreado) e crimes (matar amantes), por cristão desconfiado, que, após o amor, não adormece e lhe retira o anel, seu salvo-conduto por corredores de guardas, e que já esporeia cavalo de medo. Quando acorda, espavorida, uivando pelo amado (mas, ao adormecer a seu lado, não o encontrara, enfim?), os cavaleiros que o perseguem gritam-lhe: «Torna, torna, cavaleiro, que na torre a dona chama.» Se ainda temos uma forma verbal – podendo também ser um elíptico «que na torre está a dona Chama» –, é, já, terceira e mais rica versão. No desespero de se ver denunciada, a princesa cobre-se de toda a sua riqueza e atira-se a um poço. Mas quem acrescentou que, contíguo, há outro poço, de peste, e que, se nunca houve escavações no monte, foi com medo de bater, não no poço das riquezas, mas no da peste, que mataria tudo em redor? Esta ideia serviu-me para desenvolver uma guerra surda entre os bons e os maus, em individuações que adiam um juízo imediato do leitor.
Ora, com este suicídio, voltamos ao universo literário tirado da vox populi, e pequeno deslocamento geográfico: em Lordelo, a poucas léguas de Vila Real, situa o Camilo Castelo Branco de Anátema (1851) – estreia em que a circularidade do anel é igualmente fundamental – o castelo a que o povo chamava Torre de D. Chama, na sequência da morte de Inês da Veiga:
«[...] viu abrir-se aquela janela do meio, viu uma aventesma, amortalhada de branco, chegar à janela e atirar-se dela abaixo! E depois uma voz medonha diz que bradara aqui para estes sítios: Chama!... Chama!... [...] As luzinhas apagaram-se, ficou tudo calado e meu pai, vindo para casa contar a passagem, veio aqui quase meio povo e não encontrou nada!... Enquanto a mim aquilo era moura que quebrou o seu encantamento, à voz do seu mouro que pelidava por ela: Chama! Chama! E é por isso que estes perdieiros são a Torre de D. Chama.»
A inversão narrativa – trata-se de um mouro e não de um cristão; é um homem que chama por Chama e não ela, ou os seus cavaleiros – animava-me a outras subversões.
Neste ponto, proposições da História traziam a poderosa mulher, de olhos feudais, para a topografia actual: descida do monte, ainda transformo pormenor arquitectónico da casa de Eugénia em ameias, numa alusão a torre dominando a imaginação de mortais. Num jornal da terra, A Torre de D. Chama, de 1-II-1913, explicava Francisco Manuel Alves:
«Chama era o nome próprio de mulher frequentemente usado em Portugal na idade média e mesmo antes de constituída a nossa nacionalidade, como pode verificar-se em documentos desde o séc. VIII por diante e até adoptado pela aristocracia, segundo mostram os Livros de Linhagens no Portugal. Monument. Hist. pág. 145, 148, 158, 168 do 1.º livro, p. 174, 175, 176, 178, 181 do 2.º e ainda em vários outros sítios.
Encontra-se também sob as formas chamoa ou Flamula que se equivalem.
É bem conhecida a riquíssima D. Flamula, uma das mais nobres damas do século X, senhora de várias terras na província de Entre Douro e Minho. [...]
A povoação denominada Torre de D. Chama só começa a figurar com este nome no tempo de D. Diniz [seja, na carta de foral em 25-IV-1287], sendo muito provável que a mulher que legou o nome seja uma Dona Chamoa memorada nas Inquirições de D. Afonso III ao tratarem das freguesias de Santa Maria de Serzedo e S. Miguel de Espadanedo – interrogatus unde habuit eum dicit quod audivit dicere quod dona Chamoa una mulier de ipsa vila (Serzedo) leixavit eum pro sua anima in tepore Regis donni Sancii veteris.
Trata-se, pois, de uma dona Chamoa mulher nobre e rica, natural de S. Miguel de Serzedo, povoação que hoje não existe e provavelmente ficava nos limites da actual Torre de D. Chama, que vivia no tempo de D. Sancho II que deixou os seus casais de Serzedo e Espadanedo ao mosteiro beneditino de Castro de Avelãs, junto a Bragança, com encargos de bens d’alma.
De alguma torre que essa dona tivesse como habitação, segundo o costume da época, de que restam similares em Moncorvo (Torre de Mendo ou Men Corvo) e Santa Apolónia, perto de Bragança, ficou o nome à terra da sua principal habitadora, Dona Chamoa, simplificada posteriormente em Dona Chama que suplantou e fez esquecer o primitivo de Serzedo passando assim a designar-se por Torre de D. Chama.»
Potentado económico assim descrito na deficiente pontuação do Abade de Baçal interessava-me para as guerras intestinas entre falsos cristãos e mouros no trabalho, cujo desenlace se orquestra à luz da Festa dos Caretos, descrita nos seus actos de teatro de rua, que João Vieira narrou em vídeo (em que intervim) e recriou na pintura desde 1984. A lúbrica e assassina dona Chama era causa próxima de revolta que, por outro lado, rastilhara em lutas da Reconquista cristã. Assim se explica, dentro daquela terceira versão, a revolta dos cristãos animados pelo nascimento de Cristo sob o efeito do jogo e da máscara. A preparação do combate final começa na noite de 25 de Dezembro. Na tarde de Santo Estêvão, após quase 24 horas de encenação e luta, estará queimado o castelo da princesa moura.
Face a este horizonte de expectativa, o que acontecerá à minha heroína – alegadamente lúbrica, assassina e narrativamente distante, porque contada por quem a compromete? Primeiro parágrafo:
«Vivia por este tempo na torre uma dona formosa como a noite em que nos conhecemos. Sempre, ao acordar, a imaginação dos homens corria até conquistar a fortaleza e, com ela, o corpo jamais ou fugazmente entrevisto. Dizia-se que não raros tinham sido aliciados por quem, firme no seu tenebroso poder, os honrava superiormente e matava a seguir.»
Este narrador actua no quadro do esperado. Conta a terceira versão. Para o padre da terra, inclusive (antes de, muito à frente, se converter, isto é, se desfazer do preconceito...), Eugénia retoma maldade antiga. O velho professor, por outras razões, não pode defendê-la. Ela está de relações cortadas com o avô, médico. O tio, outro rico do lugar, tudo manipula, à espera de que lhe caia no regaço a riqueza da sobrinha. É a orfandade absoluta. Pior: o comandante da guarda investiga uns crimes, noticiados em Lisboa. Por isso, o primo, paixão de infância – que, todavia, sabe ser ela amada pelo seu dele grande amigo de infância –, agora jornalista, volta à terra; ao passar a narrá-la, substituindo professor digno de pouca confiança (e que nunca perceberá ter sido aliciado para noite em que, ao contrário do que julga, não teve aquele corpo de ouro), ainda acredita nos crimes da prima. Como se dá a reviravolta? Que força tem aquela jovem, e como, de moura dita lúbrica, leva a efeito a reconquista desse primo, vencendo cristãos hipócritas e afirmando-se na virgindade de corpo e alma? Eugénia não fazia desaparecer mancebos: encontrando-lhes empregos no litoral, esvaziava a terra para que o primo viesse encher o seu deserto de amor.
Enquanto assim punha o meu pequeno mundo de pernas para o ar, no interior de uma carnavalização dos seres e da linguagem própria da festa, eu estava a reverter, ponto por ponto, memória ancestral caldeada em versões históricas, orais e literárias, servindo-me de uma diligência policiária e máscaras a retirar. Àquelas versões acrescentava algo, ausente em narradores de carne e osso: eu estava há muito apaixonado pela protagonista, imagem de Dona Chama, senhora da minha torre / terra e do coração, que aí bateu pela primeira vez.
Que isso não fosse, ou dívida para com a pátria que nos deu respiração, um autor deve tentar, em quaisquer circunstâncias, mesmo quando se mostre impossível, o salto para o outro lado – talvez que, entretanto, tenha sido lançada uma tábua de salvação, quem sabe se uma ponte de vidro...

Ernesto Rodrigues

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