sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Aspi e os outros

“ Eu sou um pequeno coelho parado no meio da autoestrada num dia de final de férias. Os carros vêm e vão e eu imóvel, apavorado, a ver os faróis dos carros a vir contra mim... Tem sido assim a vida toda.”
Aspi é diferente
Como sempre, Aspi refugia-se no canto do recreio. O mais distante da normalidade dos outros. Aqueles que brincam e jogam. Aqueles outros que namoram e se tocam. Ao toque de regressar à sala de aula, uns mais depressa que os outros, todos regressam. Todos menos Aspi. O silêncio que domina permite-lhe usufruir do bem-estar de querer ser só. De poder olhar a tília a partir da sua base, vendo o seu tronco e copa numa perspetiva interna, da árvore fazendo parte. Calma, silêncio que não procura, mas só nesse estado se apazigua. Ele não perceciona o mundo como os outros. Escuta todos os sons no seu volume máximo. Vê todos os detalhes à sua volta com nitidez microscópica. Sem filtros. Natureza pura na sua verdade cósmica. Prova o sabor sensorial que o stressa e esgota. Aspi não olha nos olhos. Olhar nos olhos é como cair num poço sem fundo. Angústia que evita escondendo-se em si mesmo. A sensação exacerbada é também fonte de prazer. Vê a beleza do mundo até aos mínimos detalhes. O mundo que se reflete no vidro duma garrafa. A casa em movimento no cromado polido daquele carro em andamento. O reflexo que lhe serve de casa, de abrigo e de escudo protetor. Na solidão do recreio, enquanto não dão pela sua ausência, Aspi alinha pedrinhas em sequências. Organiza folhas secas numa ordem singular. Movimenta-se em círculos, gesticulando em coreografias repetidas vezes sem conta. Procura assegurar a imutabilidade das coisas.
Aspi não gosta da escola.
Notada a sua ausência, é levado para a sala de aula. Não quer e por isso grita. Porque grita? Porque é assim que comunica. Aspi tem oito anos e não diz uma palavra. Vive numa enorme solidão separado dos outros por paredes de vidro que ele quer contornar, correndo, ziguezagueando. Já na sala de aula, coloca-se num canto com as mãos nas orelhas, repetindo a atitude de todos os dias, se alguém se aproxima, grita. Não suporta ninguém por perto e muito menos que lhe toquem. 
Mais à frente, há-de querer brincar com os outros mas todos os recusam. Nas suas memórias não há brincadeiras de grupo. Se alguém, a muito custo, consegue comunicar com Aspi e diz alguma coisa interessante, abana as mãos em movimentos frenéticos. Quanto mais interessante, mais abana as mãos. Mas o que interessa a Aspi? O que causa brechas na sua redoma? Ele não mente. É racional e lógico. Tudo que seja mentir, enganar ou errar é secundário. É fugir à regra e a regra é fundamental. Ele gosta de se refugiar no campo da sua obsessão, no seu campo específico, um mundo onde tudo está em ordem, onde tudo é previsível, um mundo que se conhece muito bem. Ao contrário, o mundo real que lhe querem ensinar nos bancos da escola é sinónimo de caos, de mudanças permanentes e imprevisíveis.
Aspi procura os outros
Aspi quer aproximar-se dos outros mas não consegue. Todos estão acompanhados e Aspi está só. Não consegue integrar-se no grupo que se defende e repele a aproximação de quem é diferente, julgando-o. É a natureza humana dos normais, neurotípicos. Por vezes, a aproximação resulta em agressão. Os outros têm uma imaginação inacreditável para inventar torturas e levá-las à prática. Torturas físicas, humilhações físicas insuportáveis. Aspi não gosta de recordar aquelas agressões cruéis e perversas, insultos e provocações diárias, que por serem recorrentes, lhe pareciam normais. Mas não são. Aspi só quer viver a sua vida, com os seus cadernos e com os seus lápis. Cobardes agressores, gente sem luz.
Aspi cresce e procura o amor
- Tenho vinte e dois anos e nunca beijei uma rapariga. Acha isso normal Dr.? Porque não tenho o direito de me apaixonar?
O Dr. que procura ajudar Aspi a descodificar o mundo dito normal, responde:
- Não tens somente o direito… É uma necessidade. É necessário apaixonarmo-nos para construirmos, para avançarmos.
Aspi encontra o outro
Durante toda a sua vida, Aspi, recorrentemente, tinha um pesadelo que um dia contou: 
“ Eu sou um pequeno coelho parado no meio da autoestrada num dia de final de férias. Os carros vêm e vão e eu imóvel, apavorado, a ver os faróis dos carros a vir contra mim... Tem sido assim a vida toda.”
O destino reservou para Aspi alguém que cortasse o trânsito na autoestrada, lhe desse a mão e caminhassem juntos. Coincidiu com alguém também diferente, mas cujas diferenças não se manifestaram de igual forma. Onde ele tem dificuldade, ela é forte. Onde ela tem dificuldade, ele é forte. Se ele cai, ela levanta-o. Se ela cai, ele levanta-a. Apaixonaram-se.
Aspi é bom no que faz
Ninguém pense que Aspi é um pobre de espírito, na verdade é dotado de uma inteligência fenomenal e sensibilidade artística impressionantes. Aspi foi o físico mais importante do Século XX (Albert Einstein), fez carreira como realizador, guionista e produtor de cinema (Steven Spielberg), descreveu a Lei da Gravitação Universal (Isaac Newton), fundou a Microsoft (Bill Gates), brilhou em vários desportos (Marcelo Rios, Roger Alston e Clay Marzo), promoveu o nascimento da eletricidade comercial (Nikola Tesla), criou os Pokémon (Satoshi Tajiri), cantou e tocou divinalmente (Susan Boyle e Glenn Gould), foi um brilhante programador informático (Bram Cohen) e recebeu o Nobel da Economia (Vemon Smith).
Aspi é um ser admirável.




Rui Machado

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