sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Rio Tua. Fim das memórias !

         CRÓNICA
F. Campos Gouveia
O dia 2 de Outubro de 1958 foi um dia quente, apesar de já ter entrado o Outono. Eu fazia a minha primeira viagem não acompanhado, ou, melhor dizendo, na companhia de outros meninos que, como eu, iam iniciar a grande aventura do conhecimento num estabelecimento de ensino secundário. Apanhámos no Tua o comboio que nos conduziria a Bragança por volta das duas da tarde, uma hora em que as pedras estalam de calor e nos carris se podem – diz-se – assar peixes.

Sete horas depois entrávamos na estação de Bragança, no topo da avenida com o nome do homem que foi determinante na construção da linha no início do século XX. Essas sete horas foram o tempo duma primeira experiência inesquecível por várias razões. A máquina a vapor vomitava um fumo espesso, que, nos túneis do início da linha, penetrava nas carruagens provocando um cheiro ácido. Mas, nos diversos apeadeiros e estações cujos nomes descobríamos deslumbrados, era uma azáfama de entradas e saídas, com o agitar de bandeiras e o silvar de apitos dos agentes do caminho-de-ferro. A pouca velocidade da composição permitia por vezes, a partir das plataformas das carruagens, colher um figo maduro ou um bago de uva dos ramos que cobriam as ravinas a que se prendia a linha.

Do outro lado, era o vale cavado pela água ao longo de milénios onde, lá bem no fundo, corria a água do Tua, ora agitada entre fraguedos do leito, ora espairecendo sobre terrenos de aluvião em lugares mais abertos. Na outra margem do rio, a cascata de pedra, essa imponente arquitectura da natureza que semeou a paisagem de gigantes, que se estendia serra acima até aos cabeços onde por vezes uma capelinha branca assinalava a devoção das populações. A espaços incertos, como incerta é a vida de quem come o pão que o diabo amassou, umas oliveiras, umas figueiras, uns pés de vinha plantados em buracos entre as fragas. De longe em longe, espaços de mato rasteiro, povoado certamente de coelhos e outras espécies, onde, ainda assim, pontuavam colmeias para produção do mel silvestre.

Tudo isto mudava de figura quando se entrava no concelho de Mirandela. Os montes adoçavam o seu perfil e a sua altura, os campos alargavam-se em hortas de melões e hortaliça, alargava-se a vista sobre povoações próximas. Entrava-se depois no planalto onde se haviam produzido cereais e, já perto de Bragança, tomava-se contacto com o minifúndio de lameiros onde pastavam os gados. Chegava-se a Bragança de noite, com as camisas brancas enfarruscadas de pó de carvão e a alma cheia de imagens impressionantes.
Este era o Tua selvagem da minha infância. Sei que, no Inverno, era um rio impressionante cor de lodo, que carregava as águas provenientes das serras da fronteira, e que atravessá-lo em barcaças para a apanha da azeitona na outra margem era uma manobra arriscada, onde se perderam algumas vidas. Era também um rio de peixes, e de transgressões das regras da pesca. Era uma marca da gente ribeirinha e um componente indispensável da geografia do Nordeste.

A pouco e pouco o comboio perdeu terreno, vencido pelos concorrentes motorizados e pelas estradas de alcatrão, pela pressa de chegar que acabou com o deleite da viagem. Após protestos veementes de alguma população, o jogo dos números levou ao encerramento da parte da linha de Mirandela a Bragança, ficando a população do sul do distrito agarrada ao resto, mantendo a linha como circuito de vida e de contacto. Esse resto, dizem-nos, é percorrido anualmente por alguns milhares de pessoas. Um acidente na linha e a perspectiva duma barragem ameaçam acabar com ele. Em nome do progresso, em nome da energia limpa. Será?

Quem conheceu o rio selvagem da minha infância não pode deixar de pensar que o ambiente é feito de memórias de homens, de gerações de homens, envolvidos ao longo duma permanência milenar com uma paisagem característica que determinou uma certa forma de vida e de actividade. Essas marcas de memória estão impressas na paisagem. Essas árvores de fruto plantadas em ravinas, essas oliveiras, essas vinhas velhas, essas colmeias, essas casinhas plantadas de longe em longe, as capelas, as povoações debruçadas sobre o rio, tudo isso é parte duma identidade sedimentada, alheia talvez ao bulício dos negócios, mas consciente dos valores da solidariedade, da vizinhança, do respeito da natureza.

O que mais me atormenta na perspectiva de desaparecer a linha não é a linha em si mesma. São os valores que a linha representa, é um vale único que se encobrirá dos olhos das próximas gerações, é o mudar de identidade do vale, do que restará do vale. E, sobretudo, a falta de ponderação de todos estes factores quando se tomam decisões. O império dos números anula todas as outras considerações. O equilíbrio económico dos projectos leva sempre a melhor sobre os equilíbrios sociais e ambientais, esquecendo-se os decisores de que o tempo do social e do ambiental é um tempo muito mais longo, porque os sentimentos dos povos e as características das paisagens não se amortizam em meia dúzia de anos.

Ainda estamos a tempo. Talvez seja inevitável construir a barragem. Mas será inevitável destruir a linha? Será inevitável deixar a paisagem inacessível? Será inevitável eliminar a presença humana no vale do Tua, ou numa parte dele? Que compensações arquitectónicas, que compromissos ambientais, que alternativas de circulação, que alternativas de vida se propõem?

Não tenho respostas, nem conhecimentos para as sugerir. Mas penso que há-de haver formas de conciliar a economia, a energia, com os homens e as suas memórias. Por isso, penso que é inderrogável responsabilidade dos nossos autarcas lutarem abertamente, à luz do dia, perante as populações e apoiados nelas, para que não se perca o essencial.

3 Dez.2007
in:diariodetrasosmontes.com

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