terça-feira, 9 de julho de 2019

EMIGRARES - Memórias de Agosto (Ficção)

Por: Fernando Calado
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
- Mãe, França ainda é muito longe?
- Não, minha filha é logo ali...até parece que já ouço o teu pai a falar...
Dizia para a filha, a Maria do Carmo, mulher valente, de olhos grandes e cabelos negros como a noite em que um dia de maior saudade, pegou na filha ao colo, embrulhou um cibo de presunto num rodilho e sem mais delongas se entregou nas mãos dum passador.
Maria do Carmo estava cansada dos sorrisos untados do Sr. Almeidinha dos Castiçais, um homem gordo como uma bola, amparando a barriga no desconforto dum cinto que ameaçava rebentar a qualquer momento. O Sr. Almeida tinha uma camioneta, muita fazenda e conhecimentos em Bragança.
- Então, Maria do Carmo, não queres vir à feira?!...
Dizia o Almeida, num sorriso palerma como quem tem a boca na dimensão exacta da distância das duas orelhas.
- Bem precisava, Sr. Almeidinha, não sou capaz de arranjar um papel que o meu homem me pediu, das Finanças...
- Pois anda daí mulher! Tu não sabes que eu conheço tudo em Bragança?
O tempo passou nesta espera do emigrante em terras de França. Favores, atrás de favores e Maria do Carmo, numa noite do diabo e pouca sorte, viu-se perdida nos braços redondos do Sr. Almeida. O homem suava como se todo o unto da sua barriga derretesse a qualquer momento, procurando avidamente a boca vermelha da mulher, fêmea comprada com mil favores. Maria do Carmo, sentiu nojo, abriu os olhos que permaneciam cerrados no pavor do macho horrendo e informe. Como quem acorda dum pesadelo, apertou o botão da blusa, semi-aberta, onde se desenhava um seio redondo de mulher transmontana e num rompante de coragem foge para casa do primeiro passador que encontrou, homem rude e de má fama.
Agora lá estava no aconchego da capelinha da Senhora da Ribeira, perto de Quintanilha, senhora meiga, sempre a guardar as poldras do rio Maçãs, caminho inseguro para o outro lado da fronteira.
O passador não aconselhava, numa espera de três dias, a aventura de se fazerem às poldras, pois os Carabineiros no conforto da lua cheia e de dias claros, não arredavam pé como quem está fascinado pelas águas amenas do rio.
- Que fadário terão os Carabineiros com o rio...
Comentava o passador, naquele mastigar constante dum palito ao canto da boca. Depois, franzia um olho, afagava o bigode espesso e tossia na inquietação da infindável espera.
- Mãe, França ainda é muito longe?
- Não minha filha, é já ali...já ouço o teu pai.
O fastio da recordação do Sr. Almeidinha dos Castiçais mais lhe aguçava o ouvido, afagado pelas gralhas que mansamente se acoitavam nas proximidades da capela.
O passador...pensou, naquele trejeito de quem há muito perdeu os sentimentos no drama imenso da saga da emigração e comentou taciturnamente:
- É verdade rapariga...França é logo ali...e já nem precisamos de passar as poldras. Vamos subir aquele monte, mal se esconda a lua e depois, é só caminhar, num piso maneirinho que até dá gosto e França é logo ali.
Já os galos cantavam quando o passador apontou uma placa colocada discretamente na berma da estrada:
- Vês rapariga, o que lês naquela placa?!...
- FRANÇA!...
Disse Maria do Carmo numa expressão de alegria e alívio. Depois, aquela placa era igualzinha à placa da sua aldeia, por isso França, não era nada do outro mundo e em breve estaria a descansar no afago dum beijo do seu homem.
- Adeus rapariga!...vamos a contas...
Maria do Carmo contou dez notas de conto, já tinha pago outras dez e como quem cumpre um dever despediu-se reconhecidamente do passador.
Pouco tempo depois começaram a passar carros carregados de feno e Maria do Carmo pode então ver no esplendor dum dia cálido de Verão a aldeia de França, sobranceira ao rio e bem perto de Bragança.
Uma velha penosamente aproximava-se e como uma mãe desconsolada, logo entendeu a história, cem vezes repetida, desta mulher de emigrante.
Então, levou-a para casa, fez-lhe umas sopas de ovo e deitou-a, a ela e à filha, no melhor quarto da casa que também era de outra filha, da sua filha que se gastava pelas terras da Alemanha.
Nessa mesma tarde um passador caía morto na teimosia de se fazer a França, à outra França. Os Carabineiros, sempre fascinados pelo rio, nas proximidades da Senhora da Ribeira, sabiam que estas coisas são como o destino e os passadores voltam sempre à atração fatal das poldras que levam ao outro lado da margem.


Fernando Calado nasceu em 1951, em Milhão, Bragança. É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto e foi professor de Filosofia na Escola Secundária Abade de Baçal em Bragança. Curriculares do doutoramento na Universidade de Valladolid. Foi ainda professor na Escola Superior de Saúde de Bragança e no Instituto Jean Piaget de Macedo de Cavaleiros. Exerceu os cargos de Delegado dos Assuntos Consulares, Coordenador do Centro da Área Educativa e de Diretor do Centro de Formação Profissional do IEFP em Bragança. 
Publicou com assiduidade artigos de opinião e literários em vários Jornais. Foi diretor da revista cultural e etnográfica “Amigos de Bragança”.

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