terça-feira, 24 de junho de 2014

Convento franciscano de Bragança um perfume místico de lenda

Igreja e Convento de S. Francisco - Bragança
De cá para lá e vice-versa, Bragança foi sempre terra de passagem. Dizem as lendas, umas, que foi por ali que S. Francisco passou a caminho de Compostela; outras, que foi pela Guarda. A verdade é que, em 1271, já se pensava num convento em Bragança.
Frei Manuel da Esperança – já nosso conhecido, autor da História Seráfica – gostava das coisas arrumadas, mesmo se de acontecimentos passados se tratasse. Portanto, informa que, “apertado dos desejos de martírio, este Serafim humano [São Francisco] se despediu de Itália para pregar a fé de Cristo aos mouros de Marrocos, ou ao menos de Hespanha… E posto a caminho, era tanto o alvoroço do Santo por chegar ao fim de seus desejos que, alentando a fraqueza procedida de suas enfermidades, com o fervor do espírito, vinha correndo diante e saltando de prazer. Atravessou com esta pressa por França e entrou em Hespanha… Mas Deus… lhe cortou de repente o caminho com uma doença forte… E assim se resolveu em ir visitar o corpo de Santiago, em Galiza. … No discurso desta sua romaria a Santiago, entrou também neste reino [de Portugal]”. Mas não se sabe por onde, se por Bragança, se pela Guarda. Acabou o cronista por dizer que entrou por um lado e saiu por outro.

Duvidou, no entanto, de seu dito: “… temos muito grande sentimento de que, havendo tantos Autores que lhe contaram por Itália os passos, não fizessem algum desta sua jornada expresso itinerário”. Mesmo assim, imagina o difícil por que passou o peregrino Francisco: “Muito foi o que nestas jornadas tão compridas padeceu, sempre com pouca saúde, a pé, roto e descalço, pedindo de porta em porta, como discípulo daquele grande Senhor que se fez pobre na terra para depois nos enriquecer no céu”.

Diz então frei Manuel da Esperança que o pobre de Assis entrou em Portugal pela Guarda e saiu por Bragança…, onde “admirados os vizinhos desta vila de verem nele um homem que parecia mais que homem, … os principais lhe ofereceram logo sítio e grande ajuda para se fazer a casa” (p. 48), isto é, um convento.

Mesmo que S. Francisco de Assis tivesse passado em Bragança algum dia de 1214, não teria sido dessa altura a decisão de aí construir um convento. É admissível, sim, o que, atrás alguns meses, ficou dito. Que foram frei Zacarias, frei Gualter e mais dois fratres de nome desconhecido os primeiros a chegar a Portugal, mas só em 1216, e logo encostados ao poder régio, via D. Urraca Afonso de Castela (1182-1226), casada com D. Afonso II, rei de Portugal (1211-1223), o avô de D. Afonso III (1248-1279), que deixaria, em testamento, 50 libras para o dito convento de Bragança.

A CONSTRUÇÃO DO CONVENTO DE BRAGANÇA

Temos aqui, portanto, duas ou três histórias verdadeiramente enleadas: se São Francisco andou ou não por aqui, e concretamente por caminhos que utilizavam os peregrinos nas suas demandas a Compostela, e, finalmente, quando é que, de facto, se construiu o convento franciscano de Bragança. Comecemos por esta última.

O primeiro documento conhecido que refere o convento de Bragança é de 1271: trata-se do testamento em que D. Afonso III (1248-1279) lhe deixa 50 libras. Até aí, nenhuma palavra sobre a hipotética fundação de S. Francisco. Havia já, é verdade, casas franciscanas em Alenquer, Coimbra e Lisboa, e, também, em Leiria, no Porto e em Guimarães. Em 1272, um ano depois do documento acima citado, temos já notícia de pequenos conventos, inicialmente simples eremitérios, também na Covilhã e em Lamego, Estremoz, Évora, Portalegre e Santarém. Mas do de Bragança nem palavra! Apesar de o testamento real o não esquecer, é possível que, quando ele se escreveu, o convento fosse ainda nada mais que um projeto. De resto, 50 libras eram não uma pequena fortuna, mas uma quantia não desprezível e, por isso, mais destinada a uma já projetada construção que ao quotidiano do convento.

É mesmo impossível que o humilde peregrino jacobeu, apressado como todos – de Compostela “se saiu com muita pressa”, relata frei Manuel –, tenha podido, sem mais, tomar a decisão de construir em Bragança um convento, e já me vou!, “e com isto se despediu de Portugal”. Uma decisão destas precisava de tempo.

Os mendicantes – fazia parte do seu carisma! – apeteciam os grandes ou consideráveis centros urbanos, mas sempre os mais novos – Vilas Novas – ou de população jovem. Iniciavam o seu apostolado quase sempre por pequenos eremitérios. Logo que possível, no entanto, com o auxílio da realeza, penetravam nos centros urbanos. Foi assim em Coimbra, em Leiria, também em Alenquer, em Guimarães… 

Mas a sua chegada levantava normalmente problemas. Perante métodos pastorais novos, a pregação itinerante, sobretudo, e diante de teores de vida tão radicalmente evangélicos, os que já lá estavam sentiam-se incomodados, vendo desabar hábitos e tradições… Os próprios bispos os proibiam de pregar e expulsavam de um território que era seu: eles traziam um novo e especial dinamismo pastoral. Mas também os velhos religiosos os hostilizavam: em Leiria, tiveram de enfrentar os Crúzios, em Lamego, os seculares, em Estremoz, os freires de Aviz e, em Braga, território de Arcebispos, só, em 1273, puderam construir um simples hospício, em Guimarães, houve que enfrentar a Colegiada. E do Porto, talvez onde se viveu o maior conflito de todos, com o próprio Papa a acudir, já aqui se falou, também. Em contrapartida, a autoridade régia, que se esforçava por centralizar no poder régio quanto andava dividido pela nobreza e pelo eclesiástico e que, por isso, combatia os “senhores das urbes”, acolhia com simpatia e múltiplas benesses os fratres, que centravam a sua atenção nos mundos novos que nasciam. Já aqui se falou de Coimbra, de Alenquer e fala agora de Bragança.

Duvida-se hoje da versão de Frei Manuel no que respeita à fundação franciscana de Bragança: parece ser mais verdadeiro que o convento transmontano reivindicou, desse modo, uma antiguidade que não tinha, ocorrida ao ritmo de uma pretensa peregrinação jacobeia de Francisco. Veja-se ao lado o episódio de frei Lucas.

No entanto, a construção de Bragança pode ter começado ainda no séc. XIII. 

«Brevemente puseram em bom estado os moradores da terra as obras deste convento no mesmo lugar onde agora o vemos: fora, mas junto da cidade, por ser mais acomodado ao nosso instituto de procurar o remédio das almas sem dispêndio das obrigações do coro. Está situado a respeito da cidade para a parte do nascente, em correspondência do mosteiro das freiras de Santa Clara, que fica da outra banda, estendendo-se seguro entre estes baluartes, mas inclinado algum tanto ao Sul, o corpo da própria cidade. Este sítio, que é fresco, ainda que assombrado com a soberba do castelo, nos deram alguns devotos… ».

No primitivo edifício, terá já pernoitado, em 1282, a futura rainha de Portugal – Santa Isabel – na difícil viagem que fez das longínquas terras aragonesas para Portugal, como regista a História Seráfica: “A rainha Santa Isabel lhe [ao convento de Bragança] teve sempre especial devoção por ser ele o primeiro em que entrou neste reino quando vinha de Aragão, e ajudada da grande magnificência dEl-Rei seu marido, D. Dinis”.

Mas deste edifício trecentista nada resta. Nos finais do tempo filipino sofreu uma profunda remodelação. Mas dele também nada há pois que, em 1728, “sofreu um destruidor incêndio”. Então se construiu o edifício atual, situado a nordeste do castelo, na parte velha da cidade. É, desde 1985, a Biblioteca Pública e o Arquivo Distrital de Bragança.

SÃO FRANCISCO, DE ASSIS A COMPOSTELA

Veio ou não São Francisco a Hespanha? Demandou ou não Compostela?

Diz a lenda que sim. Mas só ela. Mas é verdade que a lenda se enquadrou perfeitamente no tempo e no modo como a peregrinação a Compostela se desenrolava e cumpria naquele século XIII.

Desde logo, que caminhos seguiu?

Chegado a Hespanha – agora se retoma frei Esperança – “Frei Lucas… lá o leva de Burgos a Compostela, e por terras de Astorga, … o caminho mais direito”. Mas há outras opiniões: “padre Gonzaga diz que nesta vinda entrou em Ciudad Rodrigo… Daqui o metemos em Portugal, facilmente pela cidade da Guarda, donde irá a Guimarães, primeiro que chegue a Santiago”. 

Na catedral de Ciudad Rodrigo guarda-se ainda hoje uma vestimenta medieval – uma relíquia – que se pretende ter ali sido deixada por tão famoso peregrino. 

Depois de Ciudad Rodrigo, nada mais natural que ter demandado a Guarda, depois Trancoso e a região de Lamego, Guimarães estava na direitura de Compostela, que ficava logo acima, muito depois já de ter passado em Caria…

Ouçamos Aquilino Ribeiro em A Via Sinuosa: 

— Neste sítio, Libório, descansou o grande padre S. Francisco de jornada para Compostela. Reza a história que o servo de Deus vinha trilhado do caminho e tinha sede; aqui lhe foi dado matá-la numa fontainha, que não era este chafariz formoso, talhado, mais parece, para os jardins do papa que para cerca de monges. Por certo que o suor lhe caía do rosto e o bebeu a terra onde pisamos. (…) Quando aqui vieres, que a tua mente esteja pura, Libório; este retiro - sabes? S. Francisco de Assis foi Jesus que voltou ao mundo de pobrezinho - é tão inspirado como o Horto das Oliveiras.1

Esta evocação do meu mestre acudia-me ao espírito sempre que, nos dias de sol, me era grata a frescura daquele remanso [do convento de Caria]. Sobre ele, erguia-se a figueira de muitos anos, sombreando o lugar a que a presença de S. Francisco dera um perfume místico de lenda. “Aqui se erguerá uma casa para pobres de vida pobre, quando Deus for servido!” – dissera ele.

E lá chegou São Francisco a Compostela. “Com estranha humildade visitou o santo o corpo de Santiago, em cuja igreja lhe foram os céus abertos, e apareceu um Anjo, o qual significou como Deus era servido de que tornasse a Itália, para tratar do aumento da sua Ordem seráfica. … Feito isto se saiu com muita pressa… e tornou a entrar em Portugal …».

Diferente deste muito utilizado caminho jacobeu - Ciudad Rodrigo, Guarda, Guimarães, Compostela - havia um outro, antigo também, e calcorreado também por muitos. Refere-o Fernão Lopes, na sua Crónica de D. João I:

“… açertouse de virem pera aly (Braguanca) muitos almocreves e mercadores castelãos que hião cõ suas mercadorias pera a festa de Santiago de Gualiza que se cheguava no mes de julho; e por que o lugar tinha võz de Castela, hião por aly seguros e emtemdião vir”.

“Por ele, tornou a entrar [Francisco] em Portugal por Bragança, caminho de Catalunha, onde queria despedir-se de Hespanha”.

“Chegou [a Bragança] nosso Padre São Francisco, andados já alguns meses do ano de 1214, para grande honra nossa e consolação de sua alma. Porque admirados os vizinhos desta vila de verem nele um homem que parecia mais que homem, venerando-o como a servo de Deus, não sofriam que se fosse sem deixar um companheiro, o qual o representasse. E para facilitarem o favor que pretendiam, os principais lhe ofereceram logo sítio e grande ajuda para se fazer a casa. Não se pôde escusar o santo Padre: mas dando satisfação à sua boa vontade, fez a planta do convento pela traça e medidas da sua santa pobreza, e deixou um companheiro dos que tinha achado em Santiago, o qual fosse correndo com estas obras até ele encontrar coadjutores que lhe mandasse do caminho. E com isto se despediu de Portugal, arrancando com saudades os corações de seus devotos que não podiam largá-lo”.

Regista assim frei Manuel da Esperança: 

“… o padre frei Lucas, que o guardou para a vinda, lá o leva de Burgos a Compostela, por fora de Portugal e por terra de Astorga, …; e diz o padre Gonzaga que, nesta vinda, entrou em Ciudad Rodrigo, e principiou [ali] o convento. Daqui o metemos em Portugal facilmente pela cidade da Guarda, donde irá a Guimarães primeiro que chegue a Santiago como dão a entender nossas Crónicas antigas, o padre frei Marcos e o cónego Gaspar Estaço, nas suas Antiguidades. 

De Guimarães seguiu “seu caminho pela cidade de Braga… Além de Ponte de Lima, em pouca distância, aparece uma fonte chamada de São Francisco onde dizem que descansou e bebeu. E pode ser que, por isso, ali perto se fundasse o nosso convento de Vale de Pereiras, antigamente de frades, e hoje de freiras de Santa Clara. Entrou em Galiza pela cidade de Tui, e chegou a Compostela para onde o levava o peso da devoção . (…)

E quando ele der volta de Compostela, tornará a Portugal, conforme disse Gonzaga, e fundará o convento que nos deixou em Bragança. Esta segunda entrada nos obriga a confessar o mesmo padre frei Marcos com as sobreditas Crónicas, dizendo que de Nonís [Noia] foi o Santo a Orgonho, hoje chamado Orgem [Orgens?], os quais lugares, postos nesta direitura a os que vêm de Santiago, não os encaminham para ir a Guimarães, senão para Bragança, além de ficar mais perto. E deste modo, encurtando os rodeios ao santo Patriarca que andava enfermo e cansado, dizemos que entrou em Portugal pela Beira, daí foi a Guimarães, desta vila a Compostela, e tornando por Bragança levou o caminho direito, que vai para a Catalunha”.

CONCLUSÃO

Está, portanto, o convento de Bragança nimbado por um perfume místico de lenda, como acima dizia Aquilino Ribeiro. Aqui não houve luta interna, entre o bispo e os fratres ou com quem quer que fosse. De resto, se, na versão lendária, o convento de Compostela foi também fundado por S. Francisco, como podia ele não ter feito o mesmo em Braga, e ter escolhido para tal a remota Bragança, pertencente embora à Arquidiocese dos Arcebispos? É que, aqui, tudo havia corrido à maravilha!

“O amor com que Bragança nos trata mostra bem a muita estimação em que tem este convento. Não somente na cidade mas em todo o seu termo, quando vem um frade de São Francisco de tal modo o festejam como se fora o mesmo santo Patriarca. Havendo duas paróquias, outra casa de religiosos e dois mosteiros de freiras na cidade, neste convento pregamos por sua conta os sermões do Advento e Quaresma; e depois, dia de Páscoa em procissão solene nos vêm dar as boas festas. No de Santa Luzia, cuja relíquia temos, é tão grande o concurso da mesma cidade e dos montes que causa admiração. Com os párocos, estamos tão germanados que, sem respeitar isenções, obrigação ou direito, uns e outros partimos liberalmente as ofertas dos defuntos que nas suas ou na nossa igreja se enterram. E esta conformidade não deixa de fomentar o amor que geralmente nos têm todos os eclesiásticos, e já chegou a estado que por não vir a faltar a nossa sustentação, ordenaram alguns bispos de Miranda que na sua diocese não pedissem frades castelhanos; e noutras ocasiões os visitadores deste próprio bispado, querendo aliviar a os frades do trabalho dos caminhos, eles mesmos tomavam à sua conta a cobrança das esmolas que se pediam pelos montes para as obras da casa. Mas também tudo era necessário para eles, que são vinte, levarem mais facilmente assim o rigor do clima no estio e no inverno, como a grande separação em que está o convento pela distância das terras do mais corpo da província; e se só a razão de bom governo, purificada de paixões, os lançar por estas partes, menos terão que sentir em se verem tão longe de seus irmãos”.

E por aqui nos ficamos com este perfume místico de lenda.

Arlindo de Magalhães

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