quinta-feira, 29 de maio de 2014

Centros históricos - «Como "sonhar" com uma modernidade consistente?» - Associação

António Menéres, secretário-geral da Associação Portuguesa dos Municípios com Centro Histórico (APMCH), aborda em entrevista a importância destes núcleos urbanos e a necessidade de os manter intactos. Isto «fazendo jus aos séculos de história que os caracterizam». O responsável apela à intervenção nos centros históricos dotando-os de residentes, assim como a «manutenção do edificado existente». Sem estes aspectos, «como "sonhar" com uma modernidade consistente?», sublinha o responsável.
Café Portugal - Que radiografia e perfil traça em termos gerais, dos centros históricos, de norte a sul do país?
António Menéres - Traduzindo os termos perfil e radiografia, pelo sentido da própria estrutura física dos núcleos originais das nossas cidades e vilas, reconhecemos que as mesmas não foram pensadas para uma circulação automóvel, nem para receber grandes estruturas colectivas administrativas, de ensino ou de comércio, entre outras e, o conceito de comodidades ou direitos de cidadania, não tinham a mesma exigência dos nossos dias. Nestes aglomerados, as suas gentes viviam essencialmente do comércio local, dos seus próprios artesãos e da relação com o mundo rural envolvente. As suas gentes, especialmente as mulheres, dedicavam-se aos designados trabalhos domésticos e as movimentações, até ao início da era industrial pautavam-se pelo ritmo do passo humano, ou seja, os quatro quilómetros por hora, sucessivamente, ultrapassados pela velocidade dos transportes marítimos, terrestres e aéreos, mesmo sem falar do valor instantâneo da internet dos nossos dias. Isto é suficiente para avaliarmos a dificuldade de conciliar interesses e anseios dos seus actuais residentes quando «fora de muralhas», utilizemos este termo, tudo é diferente em vias de circulação, em espaços públicos, em equipamentos colectivos, etc. Ou há alternativas aliciantes que se sobreponham às limitações próprias destes velhos núcleos urbanos, ou as panaceias aplicadas não passam mesmo de panaceias. O âmago da questão tem origem neste antagonismo.
C.P. - O centro histórico de uma cidade é, regra geral, a área mais antiga que se tornou ao longo dos últimos anos no centro da cidade moderna. Mas um dos problemas que se coloca a este desenvolvimento é a reabilitação urbana, ponto em que a Associação tem insistido. Como pode este problema ser ultrapassado?
A.M. - Sem dúvida a gestão de todo um território municipal cabe ao seu Executivo e, colocada nestes termos, a questão de propor novas dinâmicas para estes núcleos passam pelo reconhecimento das condições adversas que motivaram o seu empobrecimento e pelo estudo, interdisciplinar (insisto neste ponto) da forma como se pode e deve ponderar e depois realizar, um mínimo de reformas estruturais que permitam e incentivem novas actividades económicas. Sem esta consciencialização do problema, os centros históricos continuam degradados e aumentarão as chagas sociais de que são naturais vítimas. 
C.P. - Com os anos, o comércio foi definhando, os edifícios foram-se degradando e as zonas antigas das cidades começaram a morrer lentamente. Quando é que os poderes - local e central - perceberam que estavam a perder uma oportunidade de desenvolvimento?
A.M. - Os edifícios, tal como as pessoas, precisam de ter cuidados periódicos para serem mantidos em boas condições de uso e, nós, de saúde, comparando as situações. O valor do seu uso quando se torna evidente a sua contracção, provoca um menor cuidado nas operações de manutenção e, progressivamente, o total desinteresse na concretização das mesmas. Consequentemente surge um recuo dos residentes tradicionais e uma consequente ocupação por estratos menos favorecidos, cujo poder de compra é diminuto em extremo. É um problema consequente de qualquer significativa mudança sócio cultural, embora outros fenómenos estruturais possam igualmente provocar fortes danos nas zonas mais antigas das nossas cidades e vilas. A questão da oportunidade ou não, por parte dos poderes locais e central, não é de hoje. Como primeira dificuldade para executar programas de revitalização, surge a disponibilidade, sempre reduzida, para dar corpo a essas acções, o que reduz, atrasa ou mesmo provoca a desistência de as concretizar. E em períodos em que a economia nacional não apresenta sinais de uma forte recuperação, será muito difícil ultrapassarmos a escala das simples beneficiações, pois o retorno financeiro para as obras de maior fôlego, não é aliciante para os promotores privados, parceiros importantes neste campo da desejável evolução urbana dos velhos aglomerados portugueses. E como a valorização cultural dos residentes não é factor importante para o promotor privado, a dificuldade de ultrapassar o problema, neutraliza em termos práticos, a vontade e os recursos financeiros da maioria das nossas autarquias. 
Desertificação:
C.P. - Em que medida o envelhecimento das populações – sobretudo no Interior – e o despovoamento contribui também para impedir a modernidade e potencial dos centros históricos?
A.M. - A desertificação do Interior é consequência da progressiva diminuição de oportunidades em obter empregos estáveis e devidamente remunerados. É evidente que os mais idosos terão menos probabilidade de êxito num outro «universo» de trabalho e, portanto, raramente encaram o abandono do local, senão mesmo da região que reconhecem como sua, enquanto os mais novos, confrontados com a míngua de oportunidade e, justamente, pela sua juventude e menor apego ao torrão natal, abalam na primeira oportunidade. Esta realidade tem por consequência a progressiva dificuldade de obter mão-de-obra capaz de efectuar as tarefas de manutenção dos edifícios, dos espaços colectivos e das próprias infra-estruturas que também, óbvio, envelhecem. Portanto, se não se verifica a normal manutenção do edificado existente, como «sonhar» com uma modernidade consistente? Quando surgem novas edificações, os respectivos promotores não são permeáveis a uma análise qualitativa para a sua obra, apenas pretendem obter um lucro especulativo, sem outros parâmetros, consequentemente, só a conformidade com estudos prévios de conjunto, podem dar pistas válidas, bem como limites, para uma intervenção que, pela qualidade, pelo programa e pela componente humana inerente, darão a esperada resposta positiva ao «potencial» que um centro histórico pode oferecer.
C.P. - E aqui importam os incentivos que podem ajudar os centros históricos. 
A.M. - Aí contam muito os incentivos de ordem diversa oferecidos pelas autarquias e as possibilidades de acesso aos empréstimos das entidades bancárias, factores que muito ajudariam a fixação das populações jovens, essenciais para a revitalização dos núcleos iniciais das urbes, especialmente daquelas onde a Agricultura é já pouco significativa e onde as novas indústrias não se fixam na região. Sem uma estratégia interdisciplinar que permita, por etapas, apoiar e desenvolver actividades que valorizem os residentes conformados à estagnação, será complicado esperar um novo pulsar nesses aglomerados urbanos, muito embora detentores de um património construído, cuja salvaguarda contribuiria significativamente para a normal manutenção de qualidade de vida das suas populações residentes. Com os actuais recursos técnicos na área da reconstrução das estruturas arquitectónicas, devem ser sempre estudados e executados os procedimentos para as zonas de maior incidência sísmica garantindo uma melhor defesa contra as destruições provocadas pela fragilidade das fracas estruturas existentes ou pela deficiência dos processos aplicados nas obras de recuperação executadas sem essa garantia. Mesmo sem se entrar em linha de conta com a tragédia de um sismo, a possibilidade de um pequeno incêndio numa casa situada no interior de um qualquer centro histórico, rapidamente pode atingir grandes proporções, caso não estejam garantidos acessos livres para proporcionar uma rápida intervenção, bem como esses mesmos núcleos devem poder manter operacionais todos os pontos da rede de abastecimento de água para optimizar o serviço das corporações de bombeiros. E, esta mais-valia, a par de outras, serão sempre um aliciante para captar novos residentes e assim recuperar o orgulho, digamos, bairrista da colmeia humana que vive e convive num centro histórico que assim pode oferecer um quase diáfano prazer à sua população.
C.P. - Apesar da revitalização de muitos centros históricos, muitas vilas e cidades, que investiram na sua recuperação, não conseguem atrair pessoas nem criar dinâmicas de competitividade. A que se devem estas dificuldades?
A.M. - Pensemos em Portugal como um todo, onde as vilas e cidades de maior significado patrimonial correspondiam a aglomerados fortemente muralhados – e isso era evidente ainda no início do século XIX – ao longo de toda a raia com os restantes reinos ibéricos e nas cidades mais próximas do litoral, como será o caso de Viana do Castelo, Porto, Lisboa, Lagos, Faro ou Tavira, mais interiorizadas teremos por exemplo Braga, Guimarães, Lamego, Coimbra, Santarém, Évora, Beja ou Silves, tudo realidades com evoluções muito diferentes, entre o período medieval e os nossos dias.
C.P. - Mas e actualmente?
A.M. - Mais próximo de nós, o século XX português, passamos de uma monarquia para um sistema republicano, breve e confuso, substituído por uma ditadura com um percurso de 40 anos, tudo isto no meio de uma Europa, cenário de duas guerras tremendas, a par de uma transformação económica dos meios de produção, de distribuição e também de intensa conquista de novos mercados, tudo isto mostrando como as relações comerciais, culturais e políticas abalaram os velhos conceitos de governação. A natural consequência desta transformação, quase diria transfiguração, foi desvalorizando a importância estratégica dessas e doutras cidades e vilas do nosso país (e da Europa, acrescente-se) e, consequentemente, só a progressiva adaptação aos novos desafios estruturais das sociedades, poderia revitalizar esses centros históricos, trazendo-lhes novas oportunidades e dinamizando as suas gentes para outras ocupações geradoras de fontes de trabalho, conducentes com a realidade dos nossos dias. Quando se pára no tempo e essa realidade milenar não nos deixa dúvidas, os aglomerados outrora densamente povoados, ricos e de fulcral importância, foram definhando à margem de recursos e só a população idosa e já nada dada a aventuras se manteve, sem capacidade de produzir qualquer tipo de riqueza. É um modelo teórico mas, com mais ou menos variantes, encerra a triste realidade do parasitismo que se instalou em tantos aglomerados, outrora importantes. A panaceia dos envios das poupanças dos emigrantes, de ensaios de turismo ou de geminações entre cidades, constituem sinais ocasionais de movimentação sem um forte e consistente planeamento interdisciplinar capaz de fomentar as bases de um renovado vigor urbano para dar, um novo «futuro ao passado».
«Um elemento vivo»:
C.P. - Em termos arquitectónicos, conseguimos manter, em termos gerais, as linhas de construção original?
A.M. - Se se entender as «linhas de construção original» como a execução de um plano que seja construído como um todo, qualquer nova construção nova terá que se subordinar a todos os condicionalismos consequentes da proposta inicial. Não é realista esta formulação, já que a quarta dimensão, o tempo, constitui a componente dinâmica de toda a realidade humana, ou seja, não são só os edifícios que, a par das tarefas de manutenção, exigem também adaptações logo que se altere algum dos parâmetros iniciais. Por maioria de razão, a introdução de novas e, certamente, diferenciados programas, dará por certo, uma leitura nova, seja por substituição, seja por acréscimo de um qualquer novo elemento arquitectónico. E como é desejável que o centro histórico constitua sempre um elemento vivo no respectivo enquadramento urbano, devemos entender as novas construções, como valorizações da natural evolução desse centro histórico. Não será o conceito de conservadorismo que estimulará a sua qualidade, digamos em termos gerais, é muito mais a escolha de programas e de «leitura» dos novos volumes arquitectónicos que promoverão, e isso sim, a mais-valia oferecida por um determinado núcleo urbano, designado por centro histórico.
C.P. - Que casos de sucesso destacaria em Portugal como sinónimo de desenvolvimento e como exemplo? 
A.M. - O caso de Évora, cujo centro histórico é património mundial, assim classificado pela Unesco em 1986, é certamente um dos mais significativos mas, mais recentemente, o caso de Guimarães, Capital Europeia da Cultura em 2012, fez conhecer e valorizar este tipo de intervenções como bom exemplo, para nós próprios e, sem sombra de dúvida, pela projecção além-fronteiras. Outros casos de grande significado serão, por exemplo, Angra do Heroísmo, abalada por um tremendo sismo em 1 de Janeiro de 1980 e a zona do Barredo-Ribeira na cidade do Porto. Mas os bons exemplos não ficam por aqui, mesmo quando se actuou em cidades de menor dimensão ou em vilas, cuja herança e significado histórico tem uma importância que não podemos ignorar.
C.P. - A Associação nasceu quando e por que passa, em termos práticos, a sua actuação?
A.M. - A Associação Portuguesa dos Municípios com Centro Histórico foi fundada em 22 de Julho de 1988, na cidade de Lamego, como associação cultural sem fins lucrativos e, é curioso assinalar, um ano depois da aprovação em Washington da Carta Internacional sobre a salvaguarda das Cidades Históricas, o que mostra por parte das autarquias suas fundadoras, uma sensibilidade para a problemática. A sua actuação pode ser sintetizada em três objectivos principais: reunir todos os municípios portugueses que possuam, nos seus núcleos de maior significado histórico, edifícios ou conjuntos, merecedores de naturais
acções de preservação e revitalização; promover, consequentemente, em conjunto ou mesmo isoladamente, todas as acções possíveis por forma a contribuir para a defesa, conservação, recuperação, reabilitação, revitalização e animação desses centros históricos; e desenvolver todos os esforços para contribuir, efectivamente, com as entidades estatais mas, igualmente, com organizações privadas ou outras, nacionais ou estrangeiras, que visem os mesmos objectivos e que, pelos meios que se entenda acordar, possam cooperar em acções de salvaguarda do nosso património construído, sem dúvida muito rico mas, nem por isso, suficientemente salvaguardado.

Ana Clara
in:cafeportugal.net

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