segunda-feira, 28 de abril de 2014

O CARNAVAL E O MITO

Para muitos é um pecado
Que do imposto que pagamos ao Estado
E do lucro que damos ao mercado
Um pedaço seja destinado ao Carnaval
Para outros no entanto
Da magia do tambor, da cor do canto
É que vem o calor que seca o pranto
Em seus olhos já cansados de ver tanto mal…
“Lamento de Carnaval”, Gilberto Gil
(cit. por Soares: 1999, p. 125)

O Carnaval e a Máscara (alguns exemplos)
Segundo a definição de Houaiss, o Carnaval caracteriza-se por ser um “período anual de festas profanas, originadas na Antiguidade e recuperadas pelo cristianismo, e que começava no dia de Reis (Epifania) e acabava na Quarta-Feira de Cinzas, às vésperas da Quaresma; constituía-se de festejos populares provenientes de ritos e costumes pagãos e caracterizava-se pela liberdade de expressão e movimento.” (2003: p. 1803)
O Carnaval insere-se assim, num conjunto de ciclos que integram o calendário cerimonial anual sendo, sem dúvida, um dos mais importantes.
Presente sob formas muito diversas no meio urbano, ele apresenta, nas sociedades rurais mais tradicionais, características relativamente recorrentes.
O ciclo do Carnaval conhece o seu auge nos três dias que vão do Domingo Gordo à Terça-feira de Carnaval, embora os dias que os precedem possam ser já um prenúncio das folias e liberdades que se seguirão, materializados nos preparativos, quer dos trajes, quer gastronómicos.
O Entrudo propriamente dito, na sua celebração – se exceptuarmos alguns rituais específicos de cada localidade – obedece a um certo número de constantes, de difusão geral no país. A ausência completa de restrições alimentares, tanto em quantidade como em variedade é uma dessas premissas. António Serrão de Castro escreveu um soneto, no séc. XIX, o qual mostra esta realidade de forma inequívoca:

“Filhós, fatias, sonhos, mal assadas,
Galinhas, porco, vaca e mais carneiro,
Os perus em poder do pasteleiro,
(…);
Querer em um dia comer tudo;
Não perdoar arroz, nem cuscus quente,
Despejar pratos, e alimpar tijelas,

Estas as festas são do gordo Entrudo.” (cit. por Coelho: 1993, p.300)

É preciso não esquecer que logo a seguir começa um período de jejuns e abstinências. No caso concreto do Carnaval Transmontano, este articula-se com a aparição de personagens mascaradas de cariz muito próprio, como sejam os mascarados, máscaros, Caretos, os marafonos ou marafonas, ou ainda madamas, que constituem um elemento de relevo nestes festejos carnavalescos.
De todas estas práticas carnavalescas ressalta o carácter de licenciosidade autorizada, de momentânea ruptura e inversão da ordem social, onde todos os excessos são admitidos.
Para Queiroz: “os foliões ritualizam o mito carnavalesco, acreditando estar revirando a ordem social, instaurando uma sociedade igualitária revivida anualmente, cuja esperança é que um dia se perpetue.” (cit. por Soares: 1999, p. 131)
Daillois, e no que respeita à festa, justifica-a desta forma: “A vida regular, ocupada nos trabalhos quotidianos, sossegada, sujeita a um sistema de interditos, cheia de preocupações em que a máxima quieta non movere, mantém a ordem do mundo, opõe-se à efervescência da festa. ” (1988: p. 95)
A festa, aqui representada pelo Carnaval, funciona como a catarse de que a sociedade necessita. Daillois considera que “Ela implica uma grande concorrência de povo agitado e barulhento. Estes ajuntamentos maciços favorecem eminentemente o nascimento e o contágio de uma exaltação que se prodigaliza em gritos e em gestos, que incita as pessoas a abandonarem-se sem vigilância aos mais irreflectidos impulsos. Mesmo nos nossos dias (…) distinguem-se ainda nelas alguns miseráveis vestígios do arrebatamento colectivo que caracteriza os antigos rega-bofes. De facto, os disfarces e as audácias permitidas no Carnaval (…) demonstram a mesma necessidade social e continuam-na.” (1988: pp. 95-96) Estamos, assim, perante a Teoria da Ordem e do Caos. À Ordem opõe-se o Caos, a desordem.
Neste período, o mascarado mais não faz do que reforçar essa inconsciência no jogo de identidades sobre a qual assenta a vida social.
Quando falamos da realidade “máscara” e da sua riqueza simbólica, não podemos esquecer a sua diversidade em função da finalidade a que se destina.
Temos, pois, a máscara funerária, a máscara de teatro e a máscara carnavalesca.
Cravo (1999)8 desenvolve esta teoria atribuindo-lhe outros conceitos.
Segundo ele: “os etnólogos consideram actualmente as máscaras universais em
três grandes grupos: segundo a simbologia, a funcionalidade lúdica e o esvaziamento do seu conteúdo original.”
O Mito
Não se pode falar de Carnaval sem se falar de mito, uma vez que este é parte integrante de todo o imaginário que lhe está associado.
O mito, na sua vertente antropológica, remete-nos para o relato simbólico – que é passado de geração em geração – de uma qualquer realidade, seja ela referente a um fenómeno, uma cultura, um costume social.
No âmbito do costume social que, no caso concreto objecto do nosso estudo se consubstancia numa tradição popular, ou seja, o Carnaval, consideramos que mito, ritual e máscara, representam três realidades que se interligam.
Ao transpor-se o mito para a realidade, utilizam-se rituais que se podem manifestar através de diversas formas, de diversas representações constituindo a máscara, e no que respeita ao Carnaval, um elemento de grande valor simbólico.
Esta, ao simbolizar o fantástico, provoca o espanto, o assombro, ou seja, cumpre uma das primeiras funções do mito.
Veja-se, a este respeito o que diz Campbell, citado por Oliveira: “Quer concebamos a mitologia em termos de afirmação do mundo como ele é ou da restauração do mundo ao que deve ser, a primeira função da mitologia é despertar na mente um sentimento de assombro (…)” (2006: p. 13)
Cravo (1999), quando se refere ao mito, enquanto elemento transmitido pela máscara, afirma que: “cada tipo de máscaras não existe em si mesmo como sendo objecto separado dos seus contextos sociais e culturais. Por isso, neste grupo as máscaras só se consideram autênticas em função das mensagens que nos transmitem, devendo atestar a omnipresença do sobrenatural que pretendem representar e o pululamento dos mitos que nos querem transmitir.”
As sociedades de qualquer país caracterizam-se, seja qual for a sua situação geográfica, por apresentar um conjunto de valores, tradições e costumes, impregnados de grande valor afectivo. Este cariz afectivo, que se alimenta de uma diversidade muito própria, e que torna cada sociedade única, exige-lhe uma representação colectiva que perpetue a sua cultura, as suas tradições, considerando Caillois a este propósito que: “Os dados históricos e sociais constituem os invólucros essenciais dos mitos.” (1980, p. 20)
Queiroz afirma que o mito age sobre o real, no que respeita às representações colectivas, definindo-o: “enquanto a tradução de sentimentos e aspirações de uma sociedade por meio de imagens, compondo um conjunto de representações colectivas de grande valor afectivo para ela; tal conjunto se refere a algo que poderá realizar-se um dia e que se procura instalar por meio de comportamentos apropriados… O mito se aproximaria da utopia, uma vez que refere a instalação de um modelo de sociedade atraente, mas irrealizável; todavia a
utopia não é senão um projecto ideal, enquanto o mito age sobre o real.” (cit. por Soares: 1999, p. 120).
O Carnaval de Podence, representativo dos rituais de Inverno alusivos ao culto da fertilidade e da agricultura, é extremamente rico no que se refere à mitologia. Embora se baseie de forma muito significativa, no mito do “eterno retorno”, ou seja, da renovação do ciclo agrário que se concretiza com a chegada da Primavera e em que a vida é entendida como uma realidade que cumpre um ciclo, constata-se que o mesmo vive, essencialmente, do mito; mito em que se fundamentam as suas raízes.
Assim, não podemos deixar de nos referir aos deuses que mais marcaram o Carnaval e à mitologia que lhe está associada. As bacanais romanas, mais não são do que festas onde a orgia impera, sendo dedicadas ao deus Baco (Fig. 6) – ou Dionísio, para os gregos –, rei do vinho, da folia e do prazer.
Segundo Chevalier, as bacantes “s’abandonnant avec ferveur à son culte, parfois jusqu’au délire et à la mort. (…) A leurs pratiques étranges, (…) on a donné le nom d’orgiasme ou de ménadisme.” (1983: p. 94).
Este sentido de transgressão, esta vivência de uma certa loucura, está bem presente na realidade do nosso Carnaval Transmontano.
O deus Pan, não só enquanto deus dos cultos pastorícios mas também através da sua figura, meio humana, meio animal (Fig. 7), “d’apparence à moitié humaine, à moitié animale; barbu, cornu, velu, vif, agile, rapide et dissimule: il exprime la ruse bestiale.” (Chevalier: 1983, p. 724), foi como que a inspiração do comportamento dos nossos caretos. Estes, tal como Pan, caracterizam-se por possuir uma astúcia/manha bestial quando atacam as raparigas.
Em síntese, concluímos que a mitologia é transversal a toda a Humanidade, através do seu poder metafórico e dos seus símbolos. Campbell, (cit. por Oliveira: 2006, p.13) afirma que: “A vida de uma mitologia brota e depende do vigor metafórico dos seus símbolos. Estes transmitem mais do que apenas um conceito intelectual, pois seu carácter interior é tal que proporcionam um sentido de efectiva participação numa realização de transcendência.”

Mariana Especiosa do Rosário
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

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