sábado, 23 de novembro de 2013

Manifesto Anti-Leitura

Abaixo a leitura, PIM

Andam para aí alguns elementos suspeitos 
que se escondem nas sombras das bibliotecas
E chegam a ir às escolas espalhar um vício terrível e abominável
Especialmente junto dos mais novos! 
Dos mais tenros! 
Dos mais ingénuos! 
Um vício que se chama 
Leitura!

Os passadores dessa droga dura, os dealers da leitura
Transformam simples cidadãos em leitores!
Em mortos vivos!
Em gente que entrega a sua vida aos livros
E que se esquece de tudo o mais!

Abaixo a leitura, PIM! Abaixo os leitores, PUM!

O leitor é um doente!
O leitor é um viciado!
O leitor esquece-se de tudo o resto só para ler!
Cuidado com eles! Porque o pior de tudo é que a leitura pega-se!
Cuidado com os leitores!
Afastai-os de vós!
Protegei os vossos filhos!

Morra a leitura, morra, PIM

Uma geração que lê é uma geração que pensa!
Uma geração que lê é uma geração que duvida!
Uma geração que lê é uma geração que questiona!
Uma geração que lê é uma geração que critica!
Uma geração que pensa e duvida e questiona e critica  não engole qualquer patranha que lhe queiram enfiar!
Não obedece! Não se baixa! Não se cala!
Uma geração que lê e pensa  é um perigo para a civilização ocidental e para o país!

Abaixo os leitores! Morra a leitura! PAM! Morra! PUM!

Esta gentinha põe-se a ler em vez de trabalhar,
De verter o seu suor a bem da nação, 
De aceitar paciente e responsavelmente que lhe retirem a assistência médica,
O subsídio de doença, a reforma, o teatro, a música! As cuecas, se for preciso!
Esta gentinha que lê perde-se a interrogar as medidas necessárias e urgentes  para o bem do mercado, dos bancos, dos accionistas que são quem faz andar o país!
Quem lê ainda por cima diverte-se! Entretém-se! 
A ler, os leitores viajam! E aprendem! E reflectem! E riem! Choram! E sonham!
Morra a leitura PIM! PAM! PUM!

A leitura faz conhecer personagens imorais como o débil Carlos da Maia e a 
Desavergonhada Eduarda da Maia
E bruxas repelentes como a Dama Pé de Cabra do Alexandre Herculano
Ou a Blimunda do “Memorial do Convento”
Seres inúteis e irreais como o gato Zorbas da “Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar”
Criaturas atrevidas, desobedientes e revolucionários como o João-Sem-Medo,
O Pinóquio, Huckeleberry Finn, o Oliver Twist!
E loucos como o cigano Melquíades e o coronel Bluendía dos “Cem Dias de Solidão”

A leitura faz-nos viajar por lugares mal frequentados como a Ilha do Tesouro,
O Beco das Sardinheiras do Mário de Carvalho, os mares do “Moby Dick”,
A Buenos Aires de Borges, a Paris de Marcel Proust, a Londres de Oscar Wilde,
A Moscovo de Tolstoi!
A leitura faz-nos rir de pessoas sérias e responsáveis como o Conde de Abranhos,
O Sancho Pança ou o escriturário Barthleby!

Já para não falar dos autores, meu Deus! Esses seres abjectos! Os escritores
Que escrevem livros e livros sem um pingo de vergonha! Deviam ser presos!
Encerrados num Jardim Zoológico! Condenados aos trabalhos forçados!
À morte! À cadeira eléctrica!

Camões, por exemplo, era um marginal que andava sempre à espadeirada.
E se fosse só por isso, ainda podíamos perdoar. A luta, a pancadaria, a guerra, não são reprováveis! Podem até ter uma função muito positiva na nossa sociedade!
Mas esse tal Camões escrevia entre espadeiradas!!! Escrevia estrofes e mais estrofes!
Sonetos que enchem livros e que continuam a gastar papel que podia ser poupado para fazer pacotes de castanhas ou relatórios anuais da administração das empresas.

E o Bocage? Dizia impropérios! Palavrões! E até na poesia deixava a marca da sua pouca vergonha!
Se escrevesse pornografia, nós aceitávamos esses palavrões! Tinham um função social!
Mas poesia…!

E não esqueçamos essa histérica e louca Florbela Espanca. 
Essa desavergonhada! Essa grande doida que queria amar!
Deixai-nos rir! Se amasse o seu marido uma vez por semana, cumpria a sua obrigação!
Se fosse amante do chefe lá do escritório, estava a contribuir para uma gestão equilibrada do produto bruto!
Mas não! Ela vertia nos versos o seu desejo de amar este, aquele e mais outro!

E lembremos Álvaro de Campos que é uma invenção torpe, um sujeito que nunca existiu de facto! Puro delírio! Personagem frágil e contraditória!
E Ricardo Reis que também não existia! Nem Alberto Caeiro! Nem Bernardo Soares!
O senhor Fernando Pessoa que escrevia cartas de amor devia ter tido vergonha e dedicar-se à sua profissão pobre mas honrada de escriturário!

E de muitos mais escritores poderíamos falar! Gente horrível, que só gosta de mexer na miséria e na lama!
Gente carregada de maldade que nos fala da queda dos anjos e de amores de perdição, 
De barrancos de cegos, de lobos que uivam, de versículos satânicos!
E até quando escrevem sobre gente feliz, tem de ser gente feliz com lágrimas!

E há quem os leia! Quem sofra com eles! Quem os desfolhe carinhosamente sem saber que o veneno entra pelos olhos que lêem e pelos dedos que folheiam!
E depois da leitura de uma página, por vezes depois da leitura de um só parágrafo já não há remédio! 
Eles já são leitores! Estão apanhados irremediavelmente pelo canto de sereia da leitura!
A possibilidade de salvação é extremamente diminuta!
Os livros deviam ser reciclados e transformados em lenços de papel!
Em solas de sapato! Em bolas de futebol!
Mas livrai-vos de os de ler! Ou melhor! Queimem-nos!
Lembrem-se daqueles que ao longo da história tentaram salvar-nos ao queimando pilhas e pilhas de livros!

Abaixo os livros! Morra a leitura! Morra, PIM

Os livros fazem-nos afastar da realidade, da economia! Do mercado! Do futuro!
Uma ponte é feita com ferro e cimento e não com livros!
No Tribunal, o advogado não defende um criminoso com poesia!
Na sala de operações o cirurgião não abre os órgãos de um doente com um romance!
Ninguém se deixa corromper por um soneto!

Abaixo a prosa! A poesia! E o ensaio!
Morra a leitura! Morra, PIM!

E temos de falar das bibliotecas, essas casas sombrias onde o vício é permitido!
Pais! Protegei os vossos filhos! As bibliotecas são autênticas salas de chuto de porta aberta ao público!
E estão carregadas de alto a baixo de livros! E os livros estão à vista!
Pior ainda, os livros estão à mão de qualquer criança ingénua!
E alguns até têm ilustrações, bonecos que tornam a leitura mais fácil e a perdição mais próxima!
E o pior é que podem ser requisitados e levados para casa, para o seio da família onde vão espalhar a sua acção desagregadora e malfazeja!

Morra a leitura! Abaixo as bibliotecas! PUM!

Mas há esperanças para o futuro!
Por alguma razão muitos dos nossos melhores e mais impolutos dirigentes só lêem resumos! 
Ou extractos da conta bancária! Quanto ao resto, nada! Nem uma palavra! Nem uma linha!
E quando lhes perguntam o que andam a ler, muito perspicazmente, eles inventam títulos de livros que não existem para lançar o engano e, quiçá, salvar alguns dos terríveis viciados na leitura!
Sigamos o exemplo que muitos dos nossos dirigentes e gerentes e gestores nos apontam!
Há que ter coragem para de dizer bem alto:
A LEITURA PREJUDICA GRAVEMENTE A IGNORÂNCIA!

E sem ignorância o país não progride!
Não crescem os juros! Não se investe nas Off-Shores! O Estado não vende empresas abaixo do preço aos particulares! O preço da gasolina não sobe! 

Acabemos de vez com a leitura! Abaixo a leitura! PIM!

Se puserem um livro à vossa frente, caros amigos, cuidado! Desviem o olhar!
Não abram nem uma página! Pode bastar um verso para vos contaminar!
Um homem que lê pode desejar viver num mundo melhor!
Pode de repente sentir as lágrimas correrem-lhe pela cara abaixo!
Pode querer subitamente ajudar os aflitos! Pode abraçar estupidamente um amigo ou beijar os lábios de uma rapariga bela como um raio de sol a iluminar a mais bela rosa do jardim!

Por isso é preciso fechar as portas aos antros de leitura!
Sabemos que pode parecer doloroso mas é fundamental arrancar de vez os livros das mãos dos viciados e impedi-los de ler uma linha sequer!
Se for preciso tapem-lhes os olhos! 
É preciso preparar o futuro dos nossos filhos!
Não lhes dar ilusões, nem sonhos, nem alegrias! Nem dúvidas! Nem sabedoria! Nem nada!

Abaixo as bibliotecas! Abaixo os livros! Morra a leitura! Morra!
Fim

José Fanha
Poeta do Séc. XXI

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