segunda-feira, 27 de julho de 2015

SALPICÃO Bragançano e Transmontano

“As carnes do Norte são magníficas, e por isso os enchidos são maravilhosas criações culinárias... O seu salpicão...
[in Volúpia – A Nona – Arte – A – Gastronomia, de Albino Forjaz de Sampaio]


O famoso autor de Palavras Cínicas obra de grande êxito a fazer rebentar de inveja bem sucedidos autores de agora, na altura vendeu mais de 60.000 exemplares, a segunda edição é de 1911, deixou-nos judiciosas considerações acerca dos produtos de origem portuguesa base de pratos notáveis do nosso receituário e sobre a gastronomia nacional. O autor, ao exemplo de outros coleccionadores de êxitos em vida, hoje não é lido por quase todos.
Os salpicões transmontanos, especialmente, os feitos em Bragança, conseguiram atingir o patamar da fama, são consequência de um longo processo de ensacamento de carnes iniciado na Antiguidade Greco-Romana.
Os atletas romanos ganhavam forças e vigor comendo estas carnes e, porque as tripas dos animais tinham e têm grandes virtudes no respeitante à conservação de alimentos (impermeáveis, elásticas e resistem bem à fumagem), os enchidos multiplicaram-se em categorias e formatos.
Os receituários antigos rememoram receitas de salpicões compostas por grande número de ingredientes, pela minúcia destaco a dos salpicões de laranja e pimenta, a qual transcrevo:” Parti os lombos de porco em pedaços de 4 pollegadas de comprimento; deitai-os n’um alguidar de barro não vidrado, e espremei-lhe tanto çumo de laranja que toda a carne fique muito bem coberta, ajuntai-lhe algum pimento, e o sal preciso com alguns cravos da Índia: tudo isto se faz da maneira seguinte. No fundo do alguidar deita-se um pouco de sal proporcionado à primeira camada de salpicões que lhe couberem. Sobre esta camada se espreme laranja e depois de molhados pulverizam-se de pimento pisado, e deita-se-lhe um ou dous cravos da Índia. Põe-se logo sobre a primeira camada outra, e salga-se razoavelmente; deita-se-lhe mais çumo de laranja e depois de molhados em pimento em pó e mais dous ou três cravinhos da Índia; e assim se vai fazendo até acamar os salpicões todos, e deita-se-lhe tanto çumo que fiquem mergulhados. Neste estado se cobrem com um pano e uma tábua, e se deixam ficar três dias em local fresco. Passados estes três dias ensacam-se em tripas largas de porco, atam-se com brabante, e penduram-se dous a dous ao fumo. Nota. Estes salpicões devem ser feitos no mês de Dezembro, para o çumo da laranja não fermentar: elles são os mais delicados e gostosos que pode haver. Depois de bem defumados conservam-se todo o anno; mas para comer de verão podem-se conservar em azeite.”
A preciosa receita é espelho de uma época fornecendo-nos indicações sobre artefactos e utensílios então usados, repare-se no pormenor do alguidar de barro não vidrado, na medição em polegadas, no cuidado a ter em relação ao mês da feitura a fim de a laranja não fermentar, no brabante usado para os dependurar.
Na constelação dos comeres bragançanos em particular e transmontanos em geral, o salpicão emparceira com o presunto no luzimento de todo o género de refeições. Sem embargo da enunciação de receitas a comprovar o afirmado, recorro a um admirativo texto de Domingos Monteiro, fecundo escritor nascido na nossa província e que a usura do tempo o guindou ao limbo do esquecimento, o que é de lamentar.
O texto incluído no livro História das Horas Vagas, tem como título A Bisca do Morto, lendo-se a dada altura:” – Seriam aí uma duas da madrugada quando vimos a mãe e uma mulher – que devia ser uma criada – entrarem pela porta do fundo, com duas enormes travessas cheias de nacos de presunto, de salpicão, bolas de carne e canjirões de vinho. Com a maior desfaçatez, fecharam a tampa do caixão e puseram tudo em cima.”
As bolas de carne serão tratadas noutro texto, deve-se ler a totalidade do texto para sabermos o modo como o morto jogou à bisca, e a forma como os nacos de presunto, e de salpicão foram sofregamente comidos.
O salpicão é considerado o rei dos enchidos de carne, algumas das variedades existentes atingem alto estatuto na área da charcutaria fina vendida em sofisticadas lojas gourmet.
Os salpicões caseiros de estirpe bragançana são variedade renomada, além de raro no mercado geral, não têm certificação por... serem caseiros. No entanto, importa sublinhar a existência de bons salpicões concebidos nas unidades industriais existentes em Bragança e arredores, além de estarem de acordo com o normativo legal, mercê da excelente qualidade, encontram-se à venda nas boas charcutarias de todo o País.
Todas as variedades de salpicões exigem cuidados a ter na sua conservação, de modo a não perderem rijeza, aromas, sendo bom sinal quando exibem a chamada flor, prova de a fermentação ter sido efectuada correctamente, preferentemente ao ar. A experiência e a técnica mandam guardar os salpicões em suspenso num lugar fresco, lembremo-nos das adegas das casas aldeãs, caso só seja possível guardá-los nos frigoríficos, a parte encetada deve estar protegida com papel de alumínio.
O modo de servir o salpicão diverge conforme os usos e costumes de cada terra, as regras recomendam ser cortado em rodelas finas, sem pele, num pratinho, seja na companhia de manteiga fresca na categoria de hors-d’oeuvre, ou na categoria de solitário e sólido acepipe. Nas merendas é elemento preponderante na companhia de pão trigo, centeio ou exibindo-se em sanduíches e canapés. O Mestre prosador Camilo em A Queda Dum Anjo conta-nos que o esquisito Morgado da Agra (o tal Benevides) comia salpicão frito, já Ernesto Rodrigues em Torre de Dona Chama acentua a admiração que o substancial enchido justifica: “– Que tal um salpicão?
O apetite não era nenhum, mas rodela de salpicão merece honras.”
O salpicão merece honras porque refulge em diversas cozeduras: assado, cozido, estufado, frito, grelhado, ou abrilhantando arrozes, bolas, folares, empadas, massas, omeletas, pastelões e sopas. É soberbo alimento!

Comeres Bragançanos e Transmontanos
Publicação da CMB

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