segunda-feira, 27 de julho de 2015

CASTANHA, em Comeres Bragançanos e Transmontanos

“Tomarão pós de cascas de castanhas e ovos de formigas, feito em pó misturado e lançando em vinho, o darão a beber e verão maravilhas.”
[in Fysognomia e vários Segredos da Natureza – MDCXCIX]


Através desta receita: “segredo de travessura para fazer espirrar por baixo terrivelmente”, evidencia que até para fazer travessuras, possivelmente, na noite de véspera do dia de todos os Santos, as singelas cascas das castanhas, serviam e tinham utilidade, não só na circunstância da pirraça, igualmente na categoria de combustível, agasalho e conservante.
Além dos aspectos picarescos relativos à castanha que a todo o tempo topamos nas adivinhas, nas lengalengas ou parlendas, nas canções de ninar, nas invocações de bruxaria, nas crenças e superstições, nos cancioneiros e danças, nos cânticos e canções incluindo o fado, nos provérbios, nas trovas populares, nas mnemónicas, nas máscaras, nas religiões, na literatura, nas ciências e técnicas, durante séculos foi fundamental na alimentação dos transmontanos.
Os clássicos autores: Teofrasto, Paládio, Xenofonte, Dioscórides, Varrão, Catão, Plínio o Velho, Columela, seguramente os mais notáveis que se dedicaram ao estudo das plantas e da agricultura, nas suas obras dizem-nos do respeito que tinham pelo castanheiro e gabaram as castanhas no plano alimentar.
Assim continuou a ser pelos séculos fora, oriunda do Oeste asiático, os gregos trouxeram-na de Sardis na Ásia Menor e posteriormente espalhou-se Europa fora. Na obra A Retirada dos Dez Mil, (300 a.C.) Xenofonte alude ao modo como os infantes (filhos) dos nobres persas eram alimentados, nessa dieta a castanha constituía alimento de primeira grandeza.
O Frade Isidoro de Barreira no Tratado de Significações das Plantas, editado em 1698, lembra que Santo Ambrósio tecia muitos louvores ao castanheiro porque é exemplo de restauração, pois sendo cortado torna a “reverdecer, & viver de novo”, ao contrário das outras árvores que secam quando cortadas. O Santo acentua a renovação que o castanheiro representa de “fertilidade e fecunda natureza que tem.”
Os romanos gostavam de castanhas, em 37 a. C., o castanheiro fazia parte das suas culturas ordinárias, o eterno Virgílio fala nas castaneae molles, reservadas em primeiro lugar às mulheres, o voluptuoso Apício, no conhecido De Re Coquinaria insere uma receita de castanhas cozinhadas com lentilhas cujo molho levava azeite, cominhos, manteiga, pimenta, rosmaninho e vinagre.
O nome latino Castanea deriva do topónimo Castanea na Magnésia, cidade onde a castanha proliferava abundantemente.
Os romanos disseminaram a cultura do castanheiro, com especial incidência na Itália, Córsega, sul de França, Espanha, Portugal, na Grã-Bretanha até crescia no Canal da Caledónia.
Na Córsega chegou a ser moeda, e Howes (1948) anota a sua saliência nos comeres locais, na Itália a polenta fazia-se à base de farinha de castanha, no mais sabemos quão reverenciada era nas nossas paragens, pois em ano de má colheita as dificuldades aumentavam enormemente. Na farinha de castanha assentava a matricialidade do fabrico de pão, normalmente, misturada com farinha de outros cereais porque sendo rica em glúcidos, potássio e vitaminas C e B, tem falta de glúten responsável pela consistência do preparado.
Se historicamente traçamos vitorioso percurso à castanha até ao aparecimento da batata e do milho maís, antropologicamente serve à perfeição para percebermos a magistral lição de Levi-Strauss acerca do Cru e do Cozido, obra de referência para todos quantos estudam os hábitos alimentares dos povos. Os trabalhos referentes à castanha tendem a esquecer esta área do conhecimento, tão bem e tanto trabalhada pelo autor de as Mitologias, é de justiça trazer à ribalta antropólogos da craveira de Harris, Kuper, Arsuaga e Goody porque continuaram e desenvolveram as teses do sábio, alvo da ironia de Chico Buarque numa canção: “Claude Levi-Strauss não gosta da Baía”.
Desde o tempo em que Aristóteles afirmava: “nos tempos antigos o homem assava tudo”; e à passagem para o fervido nas caçarolas até aos dias de agora, a experimentação ocorrida ao longo de milhares de anos resultou na continuada invenção de formas e modos de os produtos serem conservados e cozinhados, o que também se aplica à castanha. A leitura dos clássicos: Arquestrato de Siracusa, Hipócrates, Aristófanes, Aristóteles, Píndaro, Crítias, Horácio, Marcial, Ateneu autor do Banquete dos Eruditos, além dos outros autores já citados fornecem numerosas informações sobre o castanheiro, a castanha e sua conservação. Um modo de serem conservadas em boas condições é cobri-las de nozes, porque têm a virtude de secar e sacar a humidade nelas existente, assegura Catão.
Tanto Dioscórides como Galeno denunciaram a castanha como causadora de flatulência, mas juntaram-se aos restantes estudiosos da causa das doenças sublinhando as propriedades medicinais da castanea sativa na supressão de doenças decorrentes da ingestão de venenos, mordeduras de cães raivosos e da diarreia. Outra poção das castanhas, é que: “picadas com vinagre, e aplicadas aos peitos duros das mulheres, em forma de emplastro, é muito útil remédio”, afiança Frei Miguel Agustin, num tratado publicado em 1722.
Em períodos de guerra, de desastres naturais, de fome, a castanha, levou historiadores, viajantes e aventureiros a constatarem o óbvio – a perenidade da castanha – caso de Targioni Tozzeti, que escreveu: “O fruto da castanheira é praticamente a única forma de subsistência dos nossos montanheses”. Referia-se à Toscânia e estava-se no ano de 1802. Mas já em 1780, o célebre Parmentier (divulgador da batata) durante a sua estada em Bréscia escreveu grosso estudo relativo à castanha a confirmar os tratados medievais ricos em referências ao seu desempenho na satisfação dos imperativos alimentares das comunidades.
A castanha passou da categoria de produto estratégico na dieta da generalidade das populações a produto de acompanhamento ou de excelência no nicho da alta cozinha e pastelaria contribuindo para o triunfo do nacionalismo gastronómico francês e aumento da noção de grandeza que os gauleses têm de si próprios, a excelente obra Haute Cuisine: How The French Invented de Amy B. Trubek, o exemplifica vivamente.
Pode-se afirmar que a castanha surge nas requintadas mesas europeias não só através dos marrons glacês, mas porque é importante na composição de pratos de Inverno, sendo imprescindível na salada ao modo de Ardéche, dando o toque de classe à mais alta e selecta pastelaria e confeitaria, caso das compotas, dos soufflés, das gulosas charlottes, dos gelados, das tartes, dos finos croquetes, da internacionalizada sopa de castanhas secas com leite de cabra e macarrão que se pode cortar com uma faca, ficando a colher de pé.
As razões de não termos no nosso cardápio pratos reconhecidos a nível mundial não podem ser abordadas neste texto, mas a castanha é prejudicada pela falta em causa. Nas aldeias, vilas e cidades do Nordeste apesar das alternativas entretanto surgidas, ainda é possível conhecermos o efeito da castanha em caldos, sopas, recheios, acompanhamento de peixe e carne, guarnições, saladas e doçaria. Do recheio de castanhas fala I. K. Centeno em Opus I, no poema Natal: “E para provar o que dizia comeu uma asa de peru com recheio de castanhas...”
As populações do concelho de Bragança apesar de tudo tiveram na castanha o salva vidas durante centúrias, soutos e soutos existentes desde há milénios ilustravam (e lustram a paisagem), a aldeia de Castanheira é impressão vincada no bilhete de identidade do prendado fruto no concelho. A economia local tinha (tem) na castanha fonte de receitas, numerosos documentos de diversas épocas o atestam, disso são testemunho as actas das Vereações camarárias onde vêm registadas os preços e as taxas dos produtos vendidos no Mercado Municipal de Bragança. Da consulta efectuada retiraram-se os dados seguintes:
No ano de 1894, a adjudicação dos produtos determinou que cada quilo de batata custasse 8 réis, o litro de feijão branco 42 réis, de feijão rajado 42, o litro de grão-de-bico 42. O mapa é omisso em relação à castanha. Má colheita?
Em 1906, o quilo de castanha vendeu-se a 10 réis, o quilo de batata a 9, o litro de feijão branco a 57, o feijão rajado a 50, o litro de grão-de-bico a 57.
No ano de 1909, o quilo de castanha custou 17 réis, o quilo de batata 20, o litro de feijão branco 71, o de feijão rajado 64, o litro do grão-de-bico 64.
Em Janeiro de 1912, o quilo de castanha vendeu-se a 16 réis, o quilo de batata ao mesmo preço, o litro de feijão branco a 71, o feijão rajado a 64, o litro do grão-de-bico a 71.
Em 1915, o preço médio do quilo de castanha fixou-se em $16 centavos, a batata em $33, o litro de feijão branco a $83 centavos, feijão rajado $71 e grão-de-bico $83.
No ano económico 1919, a Vereação lançou um imposto sobre géneros, mercadorias e animais exportados do concelho, sendo de cinco centavos por cada quinze quilos de castanha, igual taxa para os mesmos quilos de batata.
O preço em 1920 foi de $12 centavos por cada quilo de castanha, $16 pelo quilo da batata, $43 por cada litro de feijão branco, o feijão amarelo e o vermelho custavam $42, e grão-de-bico $43.
Em 1924, o preço médio por quilo de batata foi de 1$70, por cada litro de feijão branco 2$70, de grão-de-bico 2$00. A coluna da castanha ficou em branco.
No ano de 1930, fixou-se o preço de cada quilo da castanha em $60 centavos, o da batata em $65, o litro do feijão branco em 1$50, do feijão rajado ou vermelho em 1$20, o do grão de bico em 1$20.
Do exposto verifica-se que a castanha manteve uma paridade com a batata sem grandes oscilações excepto em 1915, nesse ano a batata vendeu-se ao dobro do preço.
A castanha como produto de exportação motivava a que os negociantes colocassem anúncios a especificar o negócio, no ano de 1940, foram anunciantes Américo de Almeida (Rossas), Américo Vaz, António José Afonso, Dias & C.ª, Domingos Manuel Lopes, Hermínio Ribeiro, José Moisés Rodrigues (Salsas), José Maria de Sá Morais (Serapicos), Leonel Mirandela e Luciano Augusto Afonso (Sortes).
Em 1945, o anúncio geral sofre alterações, entram como negociantes de castanha Augusto C. Martins Monteiro e José Maria Gomes & Filhos, saem Hermínio Ribeiro e Leonel Mirandela.
No anúncio do ano de 1952, cinco deles referem o número de telefone, os oito anunciantes são: Augusto C. Martins Monteiro, Augusto Nascimento Poças, Dias & C.ª, Domingos Lopes e C.ª, L.ª, José Maria Gomes & Filhos, José Maria de Sá Morais (Serapicos), Moisés & Sá Morais e Roque Poças.
Do pote cozida, do assador a estalar a casca, como aperitivo ou conduto principal, sozinha ou na companhia de carnes, peixes e verduras, envolvida em arroz, cuscos, macarrão e ovos, em guarnição e entrando em saladas, na forma de bolos e doces de colher, a castanha (sem esquecer a alimentação dos cochinos e aves de capoeira), é de enorme relevo da herança cultural gastronómica dos bragançanos. Assim nós a saibamos honrar.

Armando Fernandes
Comeres Bragançanos e Transmontanos
Publicação da C.M.B.

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