quarta-feira, 27 de maio de 2015

Em Trás-os-Montes a Morte foi chegando aos poucos

Uma viagem por um Portugal profundo e esquecido, conduzida pela voz de um povo vítima de promessas incumpridas. Tudo isto capturado no olhar do realizador Jorge Pelicano no documentário «Pare, Escute e Olhe». Um retrato das consequências do encerramento da linha do Tua, entre Bragança e Mirandela.

O documentário debruça-se sobre o que irá acontecer à linha ferroviária do Tua e constitui uma reflexão sobre o despovoamento e desertificação provocados pelo encerramento progressivo daquele troço ferroviário em Bragança (nos últimos 20 anos foram encerrados cerca de 300 quilómetros de via férrea). Trabalho que valeu ao realizador Jorge Pelicano os prémios de Melhor Longa-Metragem Portuguesa, Melhor Montagem, e ainda o Prémio Escolas (atribuído por um júri de alunos do liceu) na 7ª edição do Festival Internacional de Cinema DocLisboa.
Jorge Pelicano explica as emoções que todo o documentário tenta passar e as consequências que resultaram para as populações do encerramento daquela linha de comboio. «Quando, em 1991, o comboio deixou de circular entre Bragança e Mirandela, foram prometidos autocarros de substituição, mas que acabaram dois anos depois. Algumas aldeias, deixaram de ter transporte, ficaram isoladas. A população mais nova, procurou oportunidades noutras fronteiras, e as aldeias ficaram cada vez mais despovoadas e com população envelhecida», afirma Jorge Pelicano.
A falta do comboio, embora tenha contribuído para agravar essa situação - pois era um meio de ligação, veículo de escoamento de produtos -, «representa acima de tudo uma metáfora de Trás-os-Montes». Isto é, «prometem transportes e desenvolvimento, ‘roubam o comboio’ pela calada da noite; prometem auto-estradas, e Bragança é hoje o único distrito do país sem um quilómetro de auto-estradas…».
E argumenta: «os políticos falam de Trás-os-Montes nas campanhas eleitorais, prometem, extraem a riqueza daquela região, mas os transmontanos continuam a ser um povo esquecido e abandonado». «Costumo recorrer a uma imagem metafórica: a linha do comboio naquela região era como se fossem veias por onde passa o sangue, a vida. Ao arrancarem essa parte, a morte foi chegando aos poucos.
De facto, há aldeias despovoadas, envelhecidas, sem um único transporte ou uma mercearia para comprar um litro de leite», relata.
A ligação entre Bragança e Mirandela foi desactivada em Dezembro de 1991, e o Jorge Pelicano quis mostrar como «essa sentença acentuou as assimetrias entre o litoral e o interior de Portugal». O realizador explica: «tivemos de recuar a 1991 para perceber e contextualizar a evolução desta região, sobretudo a posição e promessas em torno dos transportes. O facto de não terem vias de comunicação – grandes impulsionadoras de desenvolvimento (veja-se o comboio que é considerado o transporte de mais desenvolvimento) -, amputa uma série de possibilidades, especificamente o desenvolvimento».
Lembra que diziam que não dava lucro, «essa foi uma das razões para exterminar uma linha de caminho-de-ferro». «Como podia dar lucro se os horários eram desajustados à vida das pessoas e não faziam investimento?», questiona, acrescentando que «é natural que com a escassez de vias de comunicação, as oportunidades de desenvolvimento sustentável ia perdendo força, perdeu população, perdeu investimento, contrariamente ao litoral».
«As pessoas estão resignadas»
Jorge Pelicano conta que encontrou uma «região fantástica, paisagens e pessoas maravilhosas, que sabem receber como ninguém». Relativamente à questão do comboio, «as pessoas estão resignadas». «Na altura, lutaram, manifestaram-se em Bragança, cortaram as vias em sinal de protesto. Fecharam escolas, maternidades, entre outros…quase duas décadas passaram e as pessoas apenas ostentam uma revolta interior. Porquê? Não há pessoas para lutar. Tal como disse anteriormente, as aldeias estão despovoadas e a população é envelhecida», frisa. O mau estado da linha e os sucessivos encerramentos levaram a que as populações tenham ficado mais isoladas. Jorge Pelicano afirma que o mau estado da linha é no troço activo, entre Mirandela e Tua e informa que na parte desactivada já não há carris.
O realizador sublinha que «a falta de investimento e prevenção na linha aumenta as probabilidades de risco e é obviamente uma falta de atenção pelas entidades responsáveis pela preservação e segurança da linha. Fiz vários percursos a pé e viam-se traves podres, parafusos soltos…».
E prossegue, dizendo: «fomos inclusivamente à Suíça, uma terra cheia de comboios, conhecer o modelo e como dinamizam as linhas não só para o serviço às populações, mas também para servir o turismo.
Pude constatar acima de tudo a prevenção. Aliás, encontrámos vários portugueses a trabalhar na linha, pois tinham feito umas medições, constataram um deslocamento de terras da montanha de dois centímetros e actuaram logo».
O realizador do «Pare, Escute e Olhe» salienta ainda que em Portugal, apesar dos acidentes, «veio-se a verificar nos relatórios, como disse na altura a Secretária de Estado dos Transportes, que afinal as inspecções à linha não foram realizadas devidamente».
«A partir do momento que a CP, a REFER têm uma linha em funcionamento têm de garantir as condições de segurança, bem como, as próprias carruagens deviam ter condições, inclusive casas de banho.
Pelos contactos que fiz, percebi que as entidades desconhecem muitas vezes a realidade no terreno e as suas necessidades», sustenta.
Relembra que o património do Vale do Tua «é único». «Como está não pode continuar, sou contra. Mas com intervenção é um lugar com um potencial fortíssimo», frisa, dizendo que «conhecendo esse potencial face à construção da barragem e de aumento energético de 0,03% não é justo aniquilar um património único, a sua biodiversidade em nome de um progresso que em nada vem favorecer os transmontanos e as questões energéticas». «Porque se apostassem mais em poupança energética, por exemplo as pessoas comprarem electrodomésticos classe A+, apostassem nas lâmpadas economizadoras, entre outros, não era preciso destruir um património», lamenta.
Jorge Pelicano não tem dúvidas: se a barragem da Foz Tua avançar «acaba de vez com a linha, num dos seus troços mais fantásticos». O documentário que estreou no DocLisboa e CineEco, em Seia, já venceu seis prémios. «Há um grande interesse das pessoas à volta do documentário, recebemos imensos e-mails. Em Março vai estrear nos cinemas e circular por várias salas do país. Sinceramente espero que sensibilize as pessoas, que parem sobre aquela realidade, escutem as pessoas, e olhem para uma solução com futuro que não passa pela barragem», considera, adiantando que existe um manifesto online, em que várias associações estão unidas na luta pela causa do Vale do Tua.


Por fim, Jorge Pelicano espera, no futuro, que «houvesse um forte investimento, renovação de carruagens, tivesse condições para as pessoas levaram bicicletas e canoas, que os apeadeiros estivessem abertos, restaurantes, venda de produtos artesanais». «Que representasse uma extensão ao turismo do Douro, mais um programa para reter as pessoas naquela região por mais dias», conclui.

Ana Clara
in:cafeportugal.net

1 comentário:

  1. Quem terá sido - Lembra-se? - a esfíngica figura política que, por ação ou omissão, a partir dos finais dos anos 80 do século passado, autorizou, ou pelo menos não se opôs, ao encerramento da linha do Sabor, da linha do Tua e da linha do Corgo? Daí que tenha sido, quiçá, o maior coveiro de Trás-os-Montes e, especialmente, do Nordeste Transmontano.

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