segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Uma Cidade Proibida

Por: Fernando Calado
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

Raramente desço à cidade de Bragança, naquele convívio ameno com os espaços, com os recantos, com as árvores, com os locais cheios de memórias, de afectos e de vidas.
Como a maior parte dos Bragançanos gasto-me no meu local de trabalho e faço-me somente à cidade na pressa da viagem, ou na inquietação de vencer a lonjura das ruas atafulhadas de automóveis.
Mas, num destes Domingos fui de propósito comungar a cidade e sem pressa ver as obras, o novo mobiliário urbano e francamente não me encontrei com a minha cidade.
Esta cidade é outra, dizem alguns e com razão. Está renovada, modernizada, com belos jardins, com o rio Fervença a começar a fazer as pazes com a cidade, mas a mim, Bragança, parece-me, com o devido respeito, a rapariga aldeã que se ataviou para ir à romaria. Vestiu-se a preceito, pintou as unhas e os olhos, mas as roupas e as cores não combinam com a rudeza da sua tez marcada por uma beleza ímpar de mulher transmontana, guardadora de vacas, ou ceifeira em seara morna.
Por isso, Bragança, encontro-a somente em memórias findas e ainda não me habituei a esta nova casa citadina, a esta nova Bragança do nosso desconforto, a este constrangimento de caminhar em fila, sem desvios, nem alternativas.
Esta é verdadeiramente a cidade onde se perdeu a autenticidade, nos granitos muito maneirinhos, no mobiliário urbano que vemos em qualquer parte do mundo. Perdeu-se a identidade, ganhou-se a globalização.
Nesta apreciação à cidade não critico nada, nem ninguém, eu é que não gosto desta massificação. É uma questão subjectiva de estética. O problema se calhar é meu que nasci na rudeza das aldeias da Lombada, onde os largos eram livres e as ruas, ou os becos namoravam as casas, como se não pudessem ser construídas noutros lugares. E mesmo o banco feito de madeira velha por um carpinteiro, mestre perfeito da região, parecia ter sido desenhado para o lugar certo onde se encontrava na espera paciente de caminhante cansado da jornada.
Mas o que nos interrogamos, com muito desgosto, é onde andou a gente da Cultura, nestes últimos anos que não reflectiu estas questões e passou o tempo a promover espectáculos desgarrados sem uma inserção coerente e dinamizadora das populações.
As casas, as ruas, os utensílios, num passado recente, tinham a marca do mestre, contavam histórias de vidas, respiravam, falavam de mãos e de cansaços. Hoje, a máquina anónima, constrói em série numa relação impessoal e o homem consome tudo num facilitismo que estranhamente me dói.
Claro que hoje estamos com muita pressa de viver e não podemos esperar que as coisas aconteçam. Por isso modificamos as cidades rapidamente, construímos casas em meses, obrigamos as árvores a crescerem fora de tempo, mas não sei se com esta pressa toda, com esta necessidade de vencer ciclos, seremos mais felizes.
Outro dia, um amigo que já não via há anos, falou-me de coisas que acontecem sem presa nem sobressaltos e contou-me a metáfora dum velho que queria ter uma árvore frondosa à sua porta e por isso pediu ao criado que lhe plantasse uma árvore. O criado sorriu e complacente informou o velho senhor que uma árvore frondosa demora muitos séculos a crescer. Então o velho, com a sabedoria dos velhos retorquiu: Então planta-a já hoje.
Mas o problema estético e talvez até ético continua a ser meu, pois também não gosto que se semeiem pelos passeios adornos, para impedir que os automobilistas estacionem nessas zonas. Esse impedimento é radical, induz sentimentos de repressão, o que leva a estados de espírito mórbidos e constrangedores.
Não é por esta via que se constrói uma cidade mais ordenada, mas sim pela via da educação para a cidadania. Demora tempo, mas vale a pena.
Hoje, temos uma cidade de sentido único, onde um automóvel obrigatoriamente tem que andar para poderem passar os outros automóveis. Optamos pelo carreirismo, apertamos as ruas e os espaços, construímos uma cidade propícia a depressões, a um nervosismo típico das grandes cidades, quando o nosso privilégio era a calma e a tolerância.
Mas tudo isto são palavras e nada mais do que palavras e daqui a cem anos, já ninguém se lembrará desta cidade, na urgência que os vindouros terão de construir uma outra cidade.

Fernando Calado nasceu em 1951, em Milhão, Bragança. É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto e foi professor de Filosofia na Escola Secundária Abade de Baçal em Bragança. Curriculares do doutoramento na Universidade de Valladolid. Foi ainda professor na Escola Superior de Saúde de Bragança e no Instituto Jean Piaget de Macedo de Cavaleiros. Exerceu os cargos de Delegado dos Assuntos Consulares, Coordenador do Centro da Área Educativa e de Diretor do Centro de Formação Profissional do IEFP em Bragança. 
Publicou com assiduidade artigos de opinião e literários em vários Jornais. Foi diretor da revista cultural e etnográfica “Amigos de Bragança”.

1 comentário:

  1. Una descrição que todos devíamos ler. A qualidade do Calado e o seu olhar pespicaz sobre a sua cidade. Comungo das mesmas ideias e só o faço aqui porque não gosto de falar mal da minha cidade.

    A cidade de Bragança tem sido caracterizada por intervenções que tem sido um autêntico caos urbanístico.
    O mau gosto de algumas intervenções em nada beneficiam as características que esta cidade tinha e merecia.

    Túneis e outras imitações desnecessárias a querer parecer, como muito bem disse o narrador, como efeito de mulher rural a dar a aparencia de citadina, descaracterizou-a.
    O programa Polis, salvo algumas excepções, standarizado descaracterizou tudo aquilo que distinguia as cidades!!!!!

    En fim, modernices saloias!!!!

    ResponderEliminar