segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Lhéngua Mirandesa

" Não é o Português a única língua usada em Portugal (...) fala-se aqui também o mirandês" anunciava, em 1882, José Leite de Vasconcelos no seu "Dialecto Mirandês" dando, assim a conhecer ao mundo a existência desta língua.

A sua origem remonta ao período em que, numa zona muito mais vasta, incluindo Astúrias e Leão, se começou a constituir um grupo de variedades romances com muitos traços comuns entre si e que as distinguiam de outras romances também em formação - por um lado, o galego - português e, por outro o castelhano. A esse conjunto romance deu a tradição linguística a denominação de leonês, denominação essa que tem vindo a ser substituída pela de asturo-leonês, mais conforme com a sua antiga extensão histórica e geográfica.

Trata-se de variedades que enfrentaram os séculos sem o apoio de uma escrita específica, dado que no tempo da sua maior pujança se escrevia exclusivamente em latim, e que passada essa época, só as línguas que correspondiam ao poder mais forte, politicamente centralizado e complexo, cultivaram escritas românticas e acabaram por estabelecer normas com tendência unificadora. Apesar disso, é possível à história da língua encontrar, sobretudo em documentos não literários, testemunhos escritos de existência e persistência desse antigo agrupamento linguístico ao longo dos séculos.

A manifesta perda de influência do primeiro reino cristão da Península que se viu politicamente absorvido pelo Reino de Castela, com carácter definitivo, a partir do século XIII (1226), fez com que o asturo-leonês fosse assimilado pelo castelhano e gorasse as suas possibilidades de expansão e de afirmação como língua nacional, o que não impediu no entanto, que do asturio-leonês tivessem permanecido vestígios. O mirandês, variedade do leonês ocidental, é disso um exemplo vivo.

Para que tal acontecesse várias circunstâncias históricas terão contribuído:

A pertença desta zona do nordeste transmontano, ainda em época de dominação romana, ao convento jurídico de Asturica Augusta e não ao de Bracara Augusta;

A pertença da Terra de Miranda à diocese de Astorga entre os séculos VIII e XII;

A não pertença de toda esta região de Bragança ao território que inicialmente integrou o Condado Portucalense;

A intensa colonização de que esta região foi alvo a partir do século XIII, como revelam as Inquisições de D. Afonso III, por agentes leoneses, mormente os mosteiros de Santa Maria de Moreruela e de San Martín de Castañeda, o mosteiro beneditino de Castro de Avelãs, os Templários de Alcañices e, outros particulares que terão mantido a posse da terra muito para além do século da fundação da nacionalidade portuguesa;

As relações privilegiadas, bastante antigas, entre Terras de Miranda e terras de Leão;

O isolamento desta região em relação ao resto do país a que, formalmente, há muito pertencia. Na realidade esteve, durante muitos séculos, mais voltada para Espanha do que para Portugal criando, por conseguinte, grandes afinidades culturais com as localidades mais próximas do país vizinho e condições para que o leonês sobrevivesse nesta zona.

Apesar de viver em estreito convívio com o português, numa situação de bilinguismo social, conseguiu resistir às pressões deste que, desde cedo, se começou a impor como língua socialmente mais prestigiada das duas.

Para esta resistência e vitalidade muito terão contribuído as suas funções sociais e simbólicas, de coesão, de solidariedade intra-grupal e de comunicação que fizeram nutrir, em épocas históricas diferentes, atitudes linguísticas favoráveis.

José Leite de Vasconcelos
Tendo ao longo dos tempos, o Mirandês, tradição oral, passado de pais para filhos, só em finais do século XIX, com José Leite de Vasconcelos, famoso filólogo, arqueólogo e etnógrafo, começou a ser escrita e investigada. Bernardo Fernandes Monteiro da Póvoa; António Maria Mourinho de Sendim e Manuel Preto de São Martinho, entre outros, seguiram-lhe os passos.

Falada ou escrita, esta língua, reflecte a maneira de conceber o mundo, de ver, de pensar, estar, sentir e de ser dos mirandeses, ou seja, a sua cultura, de per si, muito rica.

Não se pode conceber uma língua, sem uma cultura envolvente, enraizada e capaz de, em intercâmbio, produzir elementos semânticos próprios.

A cultura mirandesa tem, de facto, uma componente etnográfica que a língua por sua vez, expressa.

Assim sendo, dá sentido aos laços da dança dos Pauliteiros, que vem da dança Indo-Europeia de Espadas; às danças paralelas e de roda; às cantigas da segada e demais rimances; às cantigas dos ciclos da lã, do linho e das mondas; às cantigas de ronda; às cantigas religiosas (Natal, Reis, Páscoa); aos jogos de roda, etc.

Do mesmo modo, algumas peças teatrais, conhecidas por "colóquios" que se fazem ao ar livre, em dias de festa, ensaiadas sobre grandes palcos (tratam temas de inspiração religiosa ou profana), são escritas e representadas em mirandês por gente do povo. Em todas elas aparece a figura do tonto, antigo bobo, com a missão de fazer troça com trovas, como se pode ver pelos versos:

Pobo que stais a oubir
Que muito bos anganhais
Bós dezis que you sou tonto
Mas bós inda sodes mais.

Agora de barriga chena
Yê que you me bou a stender
I bós stais todos de boca abiêrta
Cun bien ganas de comer.

Em mirandês se contam histórias, se cantam e dançam as cantigas à volta da fogueira das festas pré-cristãs, do solstício de Inverno, do "carocho" e da "velha" de Constantim e da Velha de Vila Chã e de S. Pedro da Silva; se conversa e canta nos fiandeiros, reuniões familiares e de vizinhos, nas tardes e noites de Outono; se contam histórias, se discute acerca dos trabalhos agrícolas, se reza, se joga, nos serões de Inverno, à lareira, na cozinha, verdadeira sala de cultura do nascimento até à morte.

Em mirandês se informam os costumes comunitários, que vêm de tempos pré-romanos: partilha de lagares, eiras e vales, concelhos, arranjos de caminhos, festas e jantares rituais, trabalhos da lavoura (e seus instrumentos)...

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